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O Núcleo de Documentação Luiz Ernesto Kawall (Doc-LEK), coordenado pelo professor Arnaldo Chieus, organiza os documentos selecionados nos diversos núcleos do Instituto Salerno-Chieus (ISC). Seu objetivo é arquivar este patrimônio (fotos, vídeos, áudios, textos, desenhos, mapas), digitalizá-los e disponibilizá-los a estudantes, pesquisadores e visitantes. O Doc-LEK divulga, também, as ações do Colégio Dominique.

LEK - Luiz Ernesto Machado Kawall, jornalista e crítico de artes, é ativo colaborador do Instituto Salerno-Chieus (ISC) e do Colégio Dominique. É um dos fundadores do Museu da Imagem e do Som de São Paulo e do Museu Caiçara de Ubatuba.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

A Catequese Indianista de José de Anchieta

por Arnaldo Chieus

O retrato que fazemos de Anchieta ainda hoje é o mesmo que fixamos na infância, traçado nas gravuras de nossos livros escolares ajudando a compor nossa imaginação figurativa. Aquele jovem padre de batina com os pés descalços sobre as areias de Iperoig traçando os versos latinos do longo poema dedicado à Virgem Maria, do qual era devoto desde o início de sua formação jesuítica.

Anchieta era espanhol insular, nascido em Tenerife, no arquipélago das Ilhas Canárias, em 19 de março de 1534. Aos 14 anos foi com sua família para Coimbra, em Portugal e três anos mais tarde ingressou na Companhia de Jesus para dar início à sua formação sacerdotal.

Aos 19 anos e ainda noviço foi convocado pelo padre Manoel da Nóbrega para compor juntamente com outros membros da Companhia de Jesus a segunda grande expedição portuguesa ao Brasil Colônia, acompanhando o segundo governador geral do Brasil, Duarte da Costa, em 1553.

Seu trabalho evangelizador e catequético começou logo em seguida à sua chegada, juntando-se a Manoel da Nóbrega na missão de pacificação dos Tamoios em Iperoig, onde ficou por aproximadamente sete meses.

A respeito da passagem de ambos por Ubatuba, Idalina Graça, no seu livro “Bom dia Ubatuba”, assim se refere com sua peculiar poética em prosa:

“Debruçado nas verdes colinas do Itaguá, namorando eternamente o mar, o morro do Jundiaquara se destaca grandioso e imponente, guardando em si estranhos mistérios do passado. Foi neste local que, em idos tempos, Nóbrega e Anchieta, unidos em missão de catequização entre os nativos Tamoios descansavam de árduas lutas e uniam suas vozes com as vibrações do espaço, rogando ao Pai Todo Poderoso por aqueles que estavam por vir.” [1] 

E Paulo Camilher Florençano, também se reportando ao mesmo episódio histórico:

Era o ano de 1563. Dois religiosos da ordem dos jesuítas, o mais velho, o padre Manoel da Nóbrega, o outro, o ainda noviço José de Anchieta, este, na força dos seus sadios 29 anos. Eles haviam chegado a Iperoig sozinhos, desarmados e desprotegidos. Iam tentar estabelecer tratado de paz com aqueles valentes e perigosos selvagens, que, já por várias vezes, haviam posto em perigo o trabalho de colonização encetado pelos portugueses, não só na faixa litorânea, como até no planalto. As conversações iniciaram-se promissoramente, e, dois meses depois, o padre Nóbrega retornou a São Paulo levando as condições de paz. Deixava, no entanto, servindo como refém – aquele jovem religioso, livre, sozinho e pleno de mocidade.

E, aí, então, o extraordinário: – nada aconteceu!

Para livrar-se de tentações, a fim de que os seus votos de castidade não viessem a ser quebrados, Anchieta cansava seu corpo com longas caminhadas, e o espírito compondo nas areias da praia de Iperoig, e, latim perfeito, lindos e fervorosos versos em louvor a Virgem Santa. E assim, pode ileso do pecado, passar os longos dias em que aguardava o retorno do padre Nóbrega. [2]

Homem profundamente versátil, Anchieta aprendeu a língua dos indígenas, sendo essa uma das características dos jesuítas em missões pelo mundo: aprender a língua nativa para divulgar a crença e trabalhar a catequese na língua do povo receptor. Desde o primeiro contato com os nativos da nova terra, Anchieta mostrou seu espírito arguto e observador. E nesse sentido,  inspirando-se nos costumes e práticas indígenas foi que desenvolveu seu espírito evangelizador para desenvolver sua catequese.

Portanto, para melhor exercer sua missão evangelizadora e pedagógica com a preocupação didática religiosa Anchieta teve que aproximar seu interesse pelo nativo aprendendo sua língua e conhecendo seus costumes. Aproveitando os padrões culturais indígenas de comportamento, estudou o tupi para entrar no mundo primitivo dos nativos.

Sua vinda para o Brasil na expedição que trouxe o segundo governador geral do Brasil, não foi obra do puro acaso. José de Anchieta não era apenas um simples noviço. Ele já conhecia três línguas com bastante desenvoltura: sua língua mãe, o espanhol, o português e o latim. Já no Brasil pode desenvolver sua técnica de poeta plurilíngue. Ao mesmo tempo em que se inscreve na longa e vigorosa tradição da poesia latina tenta a criação de uma poesia tupi, não folclórica, mas literária. [3]

O papel de Anchieta foi de verdadeiro precursor da nacionalidade brasileira, integrando o gentio com o português e a tradição linguística indígena com a cultura católica. “Aproveitando os padrões culturais indígenas de comportamento, estudou o tupi para entrar no mundo primitivo”, impregnando a poesia, o teatro e o canto como instrumentos de catequização sendo possivelmente o primeiro europeu a fazer uso ds práticas desses povos para os fins da catequese..

Dessa maneira, como bem afirmou Cassiano Ricardo, “praticou Anchieta um indianismo ao vivo”. Sendo fato de suma importância e remontando à nossa origem literária esse “indianismo brasileiro já está em nossas primeiras letras”.

E toda essa versatilidade linguística e seu indianismo estão em ter escrito poemas na própria língua do índio. Mas – e isto é o que desejo afirmara – não está só em ele ter escrito orações em tupi e sim por dois outros motivos: a) por fazer do índio um tema de ficção; b) por toma-lo como personagem dos seus autos.

A catequese indianista era a principal função de sua pedagogia com preocupação didático religiosa. Para tanto usou de suas poesias e peças de teatro para auxiliar na conversão dos indígenas ao catolicismo. Sob essa ótica escreve a primeira gramática de língua tupi posto que a apreensão da língua dos gentios era de importância tanto para sua pregação evangelizadora quanto para os colonizadores.

Anchieta soube fazer-se entender por todas as faixas etárias, sempre considerando os entraves da comunicação proporcionados pela diferenciação linguística. A doutrinação de forma sistemática e contundente tocou diretamente na mente do nativo provocando analogias com as ideias de seu próprio mundo.

Na sua poética latina a figura da Virgem Maria é a grande merecedora da das invocações anchietanas. O marianismo sempre gozou de grande prestígio dentro da Companhia de Jesus e no catolicismo em geral.

Se considerarmos todos os poemas de Anchieta, nos quatro idiomas que eles utilizou, português, espanhol, latim e tupi poderíamos chamar sua devoção religiosa de matriarcal, lembrando ainda que o principal objeto de sua mais linda epopeia latina – De Beata Virgine Dei Matre Maria – foi a figura de Maria, a mãe de Jesus. 

Conforme preleciona Alfredo Bosi  esse poema, escrito na métrica de Virgílio é um poema do renascentismo clássico. O que de certa forma é um tanto atípico porque Anchieta é um espírito medieval. E muito embora sua catequese se mantivesse tradicional ele foi capaz de escrever um poema no latim clássico conforme preconizava o renascimento. [4]

E como afirmou Emanuel de Moraes, é certo que a poesia de Anchieta se integrou, quer pelo exercício de sua irrepreensível vocação de apóstolo, quer por haver compreendido a missão superior de poeta, não se guardando entre as preces do claustro ou nos esquálidos louvores aos poderosos. Ao contrário, conduziu-se pelo desejo de dar condições reais de vida feliz ao seu rebanho. Dessa forma pode-se afirmar que sua poesia se integrou no complexo cultural criador, em solo brasileiro, de novas manifestações da linguagem, literatura e humanismo participante. [5]

Uma de suas composições mais belas pela ingenuidade e singeleza, que chegam a ser surpreendentes sabendo-se escrita por um humanista de sua categoria é Ao Santíssimo Sacramento. [6] 

Ó que pão, ó que comida,
ó que divino manjar se nos dá
no santo altar
cada dia!
......................................................................
Vinde, pobres pescadores
a comer!
Que este manjar tudo gasta,
porque é fogo gastador,
que como seu divino ardor
tudo abrasa.
Tal al é desatino,
se não comer tal vianda
com que a alma sempre anda
satisfeita.

Cassiano Ricardo foi um dos primeiros a reconhecer não apenas as qualidades literárias de Anchieta, mas, também, reconhece-lo como o fundador de São Paulo e tê-lo por santo muito antes de sua canonização. De suas qualidades literárias “se pode dizer que foi ele o nosso primeiro indianista”. “Em latim, português, castelhano ou tupi ficaram fragmentos de sua obra.”

O seu indianismo está em ter escrito poemas na própria língua do índio. Mas – e é isto o que desejo frisar – não está só em ter escrito orações em tupi e sim em dois outros motivos: a) por fazer do índio um tema de ficção; b) por toma-lo como personagem dos seus autos. [7]

No decorrer de sua vasta obra José de Anchieta revela suas características humanísticas ao refletir inúmeras vezes sobre os limites e fraquezas de sua condição humana: o amor e o ódio; a coragem e o medo; as certezas e as dúvidas. Todas são peças que se articulam nas diversas atitudes vividas e narradas por ele.

A obra do Pe. José de Anchieta é composta por cartas, sermões, poemas e peças teatrais sobre o Brasil nos primórdios da fase colonial. Sua grande contribuição como precursor da nacionalidade brasileira “integrou o gentio com o português, a tradição linguística indígena com a cultura católica” de seu tempo, conseguindo fazer seu trabalho catequético como obra verdadeiramente participante.

No transcurso de sua vida, José de Anchieta, o jovem e neófito missionário jesuíta que veio ao Brasil Colônia com seu conhecimento e cultura medieval deixou fluir seu indiscutível talento no ofício das letras. E através da dinâmica de seu trato evangelizador foi capaz de fornecer para as gerações futuras não apenas a situação colonial do século XVI, mas, também, a sua consciência religiosa e etnográfica.

No rico itinerário poético brasileiro, a vida e a obra de José de Anchieta foi bastante reverenciada por inúmeros artífices do lirismo nacional. Desse imenso ideário destacamos dois autores de distintas linguagens imagísticas que refletem de modo fortemente substantivo a figura de Anchieta.

De Guilherme de Almeida:
Prece a Anchieta [8]
Santo: erguestes a cruz na selva escura;
Herói: Plantastes vossa velha aldeia;
Mestre: ensinastes a doutrina pura;
Poeta: escrevestes versos sobre a areia!
Golpeia a cruz a face inculta e dura;
Invade a vila multidão alheia;
Morre a voz santa entre a distância e a altura;
Apaga o poema a onda espumejante e cheia...
Santo, herói, mestre e poeta:
– Pela glória que destes a esta terra e a sua História,
Pela dor que sofremos sempre nós.
Pelo bem quisestes a este povo,
o novo Cristo deste Mundo Novo,
Padre José de Anchieta, orai por nós!

De Cecília Meireles:
História de Anchieta (fragmento[9]
“Vede Anchieta, o Santo
que louvara a Virgem
em tão longo canto,
a estender nas mãos
versos e milagres
para seus irmãos.”

[1] Bom dia Ubatuba, pg. 68.

[2] Em Ubatuba, o impossível acontece”, in Bom dia Ubatuba, pg.15.

[3] Cf. Wilson Martins. História da Inteligência Brasileira, vol. 1, pg. 31.

[4] Dialética da Colonização

[5] O milagre Anchieta. Emanuel de Moraes. Revista da Academia Brasileira de Letras, junho, 1964.

[6] Sabiá & Sintaxe, pg. 96. Cassiano Ricardo. São Paulo, 1974.

[7] Sabiá & Sintaxe, pg. 98. Cassiano Ricardo. São Paulo, 1974.

[8] Messidor

[9] Crônica Trovada da Cidade de San Sebastiam in Poesia Completa, vol. 5, p.223. Ed. Civilização Brasileira/INL. 1974.