História de um brasileiro idealista, que inventou o avião, correu o mundo, amou a sua terra e
morreu levado pelo ideal Paulista (que faz agora um reporte escrever alegre e feliz)
“Morreu ontem em Santos... etc. etc. ... o inventor Santos-Dumont... etc. etc.
... Seus inventos... etc. etc. ...” - e o registro continuava, frio e precioso sempre como
noticiado “Estadão”.
Acontece que a notícia era, realmente, daquela robusta edição do “O Estado
de São Paulo”. Dia 24 de julho de 1932. Há 15 dias, Revolução rebentara pela alma de todos
os paulistas.
E quem morrera então, tragicamente (mas isso a notícia, claro, não dava)
tinha sido mesmo o “Pai da Aviação”. Morte, por suicídio. Morto, pela Revolução.
Santos-Dumont é isso: um morto da Revolução. Como o menino Dráusio,
que morrera há um mês. E como outros quase dois mil que ficaram inertes nos campos de
batalha. Ilustre morto de cabelos brancos. Dono (sempre) das asas do mundo que deu ao
homem.
É sobre sua morte heroica em 32, e a sua bela vida, o que esta reportagem
vai contar.
1914, em Paris
Apurado, elegante, esguio (nunca pesou mais de 54 quilos), Santos-Dumont,
aquele que fazia mais uma das suas longas caminhadas a pé. De longe, qualquer um poderia
reconhecê-lo: pelas calças arregaçadas em bainha, pelo chapelão panamá, e pelos colarinhos
altos quão engomados, universalmente conhecidos, mais tarde, como “colarinhos Santos-
Dumont”. Andava e pensava. Viera do Brasil há pouco, onde recebera homenagens
excepcionais. Há oito anos, voara pela primeira vez no mundo, com o “mais pesado que o ar”.
Era o mês de agosto de 1914.
Súbito, alguém lhe deu a notícia trágica: a França, sua amada França, fora
invadida. E, pior: aviões estavam sendo usados contra a população civil! Seu invento virara
arma de morte!
Aquele dia, aquele brasileirinho franzino que em criança gostava de olhar o
voo dos pássaros e de soltar papagaios coloridos de papel de seda, e que por isso inventara os
aviões para que os homens voassem como os pássaros e como os papagaios, - naquele
instante, Santos-Dumont começava a morrer.
Viveria ainda até 1932. Até a revolução.
Viagens e “A Encantada”
Quis assim, de imediato, defender a França. Houve um incidente, contudo,
em sua residência em Deauville. Sua moderna luneta para observações astronômicas foi
pretexto para uma acusação grosseira. Que esta ao serviço do inimigo! O incidente magoou
profundamente aquele homem já magoado. E voltou ao Brasil.
Daqui, seguiu para os Estados Unidos, onde presidiu um Congresso
Científico. Ficou presidente igualmente da “Federação Aeronáutica do Hemisfério Ocidental”.
E fez, na sessão de enceramento vigoroso discurso. Tese: o avião devia somente ser
empregado como instrumento de aproximação política, cultural e econômica entre os povos.
A glória e as aclamações cresciam. Mas a mágoa, com as notícias da
Europa, aumentava também. Em 1916, Chile. Conferência Pan-Americana de Aeronáutica.
Sensibilizou-se com a recepção dos chilenos lotando as ruas para aclamá-lo. E voltou numa
arriscada (na época) travessia pelos Andes.
E ficou zanzando pelo Rio, Petrópolis e São Paulo. E no morro do
Encantado, em Petrópolis, construiu sua casa original, “A Encantada”.
Teve, então, um pequeno período calmo. Recebia os amigos, escreveu um
livro, fez invenções domésticas (como a mesa giratória de refeição).
Mas a guerra estalava ainda na Europa. E os aviões, metralhando o povo.
Tinha nessas horas de crise angústias e pseudo-culpa.
Paris, novamente
Da “A Encanada” foi para São Paulo. Num sítio entre Butantã e Osasco. Fez
equitação, leu poesia, interessou-se pela pintura. Com 42 anos, tinha ainda ânsia de saber
tudo. E não se fixava, esse homem contra a rotina. Subiu para Minas (era 1918) onde o
governo lhe dava o sítio de Cabangu em que nascera. Virou agricultor. Mas deixa súbito o
campo e corre toda a América. Quando vê, está em Paris novamente.
Mas Paris, segundo seu biógrafo e sobrinho (o eng. Henrique Dumont
Vilares), aquele Paris de “après-guerre” já não é aquele dos tempos do “petit Santos”... Ficou
na vila de seu amigo, o conde Sylvio Álvares Penteado. Mas logo alugou a casa de campo do
marquês de Soriano. E em seguida voltou ao Rio. Depois, Petrópolis, Cabangu. E novamente
Paris...
E passeando a pé, e encadernando livros, em 1927, estava na Suíça.
Apelo e invenções
Amargurado sempre, Santos-Dumont dirige um apelo à Sociedade das
Nações. Propunha a interdição do emprego de máquinas aéreas, dirigíveis ou aeroplanos
“como armas de guerra”. Na sua cabeça, tantos anos depois, ainda se imprimiam as
lembranças trágicas da guerra de 1914! Dizia inclusive com toda a modéstia:
“aqueles que como eu foram humildes pioneiros da conquista do ar,
pensavam mais em criar novos meios de expansão pacífica dos povos do
que em lhes fornecer novas armas”.
O apelo daquele cidadão vago ecoou singelamente entre aqueles burocratas
oficiosos e moralistas. Eles entendiam a linguagem do imperialismo e a do ódio, não a do
amor. Santos-Dumont, qual?
Logo depois, contudo, Lindenberg atravessa o Atlântico. Santos-Dumont se
alegra no seu retiro. E ainda: o Aero-Clube de França convida-o para presidir a manifestação
oficial ao aviador americano. Ele responde comovido e simples. Já a saúde lhe faltava então.
E dedica-se a novos inventos. Estuda o voo dos pássaros. Não lhe bastava a
descoberta dos aeróstatos e dos aeroplanos. Queria dar corpo à ideia dos tempos de criança. A
ideia do voo individual. Fez projetos. Projetou também helicópteros. E ainda ornitópteros,
aparelho para o voo individual, com asas! E criou um tipo de esqui, com motor, para a subida
de montanhas!
Volta então a Paris, para construir os aparelhos de vôo individuais. Mas a
saúde se abala. A amargura cresce sempre. Volta ao Brasil.
Dois acidentes trágicos
3 de outubro de 1928. O Rio está em festa para receber Santos-Dumont. O
“Cap. Arcona” entra barra adentro. Amigos ilustres sobem no hidroavião. (“Santos-Dumont”)
para recebê-lo. O avião sobrevoa o navio e joga por pára-quedas a mensagem do povo
brasileiro. Súbito, numa manobra insólita, o avião precipita-se no mar e naufraga. Ninguém
escapa. Santos-Dumont está quase morto. Abate-se totalmente. Não é mais o Santos-Dumont,
aquele espectro que ajuda a procurar os mortos Que comparece de luto ao enterro dos amigos.
Quase se isola totalmente num quarto de Copacabana.
Assim deprimido, volta a Paris. Recebe uma condecoração r faz um discurso
(tímido, só falou duas ou três vezes em público). Chega 1930. Novo golpe. Estala a revolução
no Brasil. O dirigível inglês “R-101” cai num desastre.Santos Dumont se abala tragicamente.
Segue para dois sanatórios (o dos Pireneus e o de Biarritz). Está no fim.
Antonio Prado Júnior chega, exilado. É seu amigo íntimo. Visita-o. Tem dó
de seu estado lastimável. Escreve à família. O sobrinho Jorge Dumont Valares vai buscá-lo na
Europa.
Santos-Dumont volta então ao Brasil para “o fim de uma bela vida”.
Ao lado dos paulistas
Voltou e foi se recompondo. Ia cedo para a Hípica (sempre a procura do
campo). Ou ao Paulistano. À noitinha, à redação do “Estado de São Paulo”. O sobrinho Jorge,
os Rangel Pestana, Plínio Barreto. Aires Neto, Júlio Mesquita Filho e outros eram as
companhias favoritas.
Mas eis que estala 32. Num átimo, São Paulo se mobiliza. Homens,
mulheres, crianças. A indústria e o comércio. Os homens de cor e os baianos. Isidoro queima.
Klinger desce de mato Grosso. O governo se empenha na luta cívica. Os poetas, os escoteiros
e os vagabundos. Começam os pingos de sangue. Santos-Dumont parte para o Guarujá. E
surpreende o Brasil, dia 14 de julho, com seu “Apelo aos patrícios”. Pede aos seus
conterrâneos que ajudem a São Paulo. No restabelecimento da ordem constitucional do país.
Santos-Dumont se eleva:
“... como um crente sincero em que os problemas as ordem política e
econômica, que ora se abatem somente dentro da lei magna poderão ser
removidos, de forma a conduzir a nossa pátria à superior finalidade dos seus
altos destinos”“Viva o Brasil Unido”.
Eis como termina sua mensagem aos brasileiros, Alberto Santos-Dumont. O
povo aplaude o ídolo. Já no dia seguinte os jornais estampam o agradecimento do governador
Pedro de Toledo:
“A Santos-Dumont, o povo paulista, por seu governador, agradece as
eloquentes palavras de apoio ao movimento constitucionalista, que hoje empolga o Estado e o
país. Batemo-nos pelos princípios universais da liberdade e do direito, que aplauso nos
poderia calar mais fundo ao coração do que a do nome universal do grande patrício?”
Santos-Dumont recebeu alegre aquela mensagem no Guarujá. Tinha feito
outra invenção, naqueles dias: uma catapulta para salvamento no mar.
E seu civismo florescia no Brasil enlameado. Ao lado dos paulistas.
Um avião que cai no mar
Santos-Dumont, àquele dia, estava de camisa branca e calça preta. Agora,
andava com trajos mais simples. Engordara (pouco) e tinha os cabelos alvos.
ERA dia 23 de julho. Há três dias fizera 59 anos.
Súbito roncou no ar o barulho de aviões voando. Eram três. E Paulistas,
porque tinham as cores da bandeira das treze listas gloriosas. Vinham levantar o bloqueio do
porto de Santos, pelos navios legalistas da ditadura. Lisias Rodrigues, Mota Lima e Gomes
Pinheiro, os pilotos, (fugiram do Rio para combater por São Paulo), faziam misérias nos
pequenos “Curtiss-Falcow”, Era preciso bombardear os navios inimigos. Santos-Dumont
assiste a batalha.
De repente, o avião de Gomes Ribeiro explode ruidosamente no ar. À frente
da cidade, no mar revolto, caem os pedaços do avião trágico e os corpos de Gomes Ribeiro e
de seu amigo, o advogado Bittencourt. O mar traga num segundo o idealismo de ambos.
À tarde, no Guarujá, um homem tem um gesto de desespero. É verdade que
a esclerose já lhe avançava pelas veias. Mas o talho no pulso acelerou a queda daquele
coração brasileiro. Que não queria ver a morte de seus irmãos através de seu invento.
Morreu ante a dor universal.
Morreu no Brasil dividido que procurara unir.
Morreu em 32, com São Paulo, por isso é um herói também da revolução.
O repórter agora não cita mais o seu nome.
E o reverencia este ano, quando decorrem 50 anos de seu primeiro voo. E 24
da revolução que apoiou.
E está alegre e feliz, porque escreveu sobre um homem idealista e bom, que
amou a sua terra e aproximou os povos.
Luiz Ernesto Kawall
TRIBUNA DA IMPRENSA
9 de julho de 1956
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