ISC - Idealizado em 1993, o Instituto Salerno-Chieus nasceu como organismo auxiliar do Colégio Dominique, instituição particular de ensino fundada em 1978, em Ubatuba - SP. Integrado ao espaço físico da escola, o ISC tem a tarefa de estimular a estruturação de diversos núcleos de fomento cultural e formação profissional, atuando como uma dinâmica incubadora de empreendimentos. O Secretário Executivo do ISC é o jornalista e ex-prefeito de Ubatuba Celso Teixeira Leite.
O Núcleo de Documentação Luiz Ernesto Kawall (Doc-LEK), coordenado pelo professor Arnaldo Chieus, organiza os documentos selecionados nos diversos núcleos do Instituto Salerno-Chieus (ISC). Seu objetivo é arquivar este patrimônio (fotos, vídeos, áudios, textos, desenhos, mapas), digitalizá-los e disponibilizá-los a estudantes, pesquisadores e visitantes. O Doc-LEK divulga, também, as ações do Colégio Dominique.

LEK - Luiz Ernesto Machado Kawall, jornalista e crítico de artes, é ativo colaborador do Instituto Salerno-Chieus (ISC) e do Colégio Dominique. É um dos fundadores do Museu da Imagem e do Som de São Paulo e do Museu Caiçara de Ubatuba.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

São José de Anchieta

Fragmentos de sua vida em Ubatuba, a pacificação dos índios e o poema de exaltação à Virgem Maria

Por: Arnaldo Chieus



Apresentação

Este trabalho do Colégio Dominique (Ubatuba, SP) e do Instituto Salerno-Chieus é mais uma das atividades da Biblioteca Hans Staden, criada em agosto de 1989. 

Esta apostila é um resumo elaborado a partir de notas de leitura que se constituíram numa comunicação oral, em abril de 2023, destinada a professores da rede municipal de ensino de Ubatuba (SP), durante atividade pedagógica de instrução continuada patrocinada pela agência local do banco SICREDI. Versa sobre aspectos da vida de São José de Anchieta, especialmente do tempo em que viveu na orla de Ubatuba, em 1563. Neste período se discutia o acordo de paz entre dois grupos: o primeiro, formado por nativos tupinambás e demais tribos da Confederação dos Tamoios, aliados dos franceses estabelecidos na baía da Guanabara; o segundo, os tupiniquins, aliados dos colonizadores portugueses. Do trabalho do padre José de Anchieta, em parceria com o padre Manuel da Nóbrega, resultou o fim das contendas, graças ao estabelecimento do primeiro tratado de paz das Américas, denominado Paz de Iperoig, em 14 de setembro de 1563.

São José de Anchieta

Padre José de Anchieta, canonizado como São José de Anchieta pela Igreja Católica Apostólica Romana, viveu em Ubatuba, na aldeia Iperoig, no ano de 1563. Naquele ano, juntamente com o padre Manuel da Nóbrega, intermediou a pacificação dos índios locais, os tupinambás. Os canibais nativos, associados a franceses que ocupavam o Rio de Janeiro, com o nome de França Antártica, rivalizavam com os colonizadores portugueses. Os tupinambás dominavam o litoral entre Bertioga e Cabo Frio. 

Em Ubatuba, aonde chegaram procedentes de Itanhaém e Peruíbe, logo após o período de quaresma do calendário religioso, os dois sacerdotes prepararam um protocolo para por fim às hostilidades entre portugueses e tupinambás e seus aliados franceses. 

Para chegarem a Ubatuba, Anchieta e Nóbrega, foram transportados, entre os dias 18 de abril e 06 de maio de 1563, por embarcações do amigo José Adorno. A expedição marítima foi capitaneada pelo próprio Adorno, para que os padres tivessem a oportunidade de parlamentar com os chefes tupinambás e negociar a paz definitiva com os portugueses. 

Tratado de paz 

O Armistício de Iperoig ou Paz de Iperoig foi o primeiro tratado de paz nas Américas e foi ratificado em 14 de setembro de 1563. Para que as conversações se frutificassem, José de Anchieta se dispôs a ficar em Ubatuba, como refém dos indígenas, enquanto Manuel da Nóbrega e um filho do cacique Cunhambebe, líder regional dos tupinambás, seguiam até São Vicente, a fim de definirem as negociações de paz entre os nativos da Confederação dos Tamoios e os portugueses. 

Enquanto esteve em Ubatuba, escreveu, nas areias da praia a sua principal obra, o Poema à Virgem. O título original era “De Beata Virgine Del Matre Maria”. São 5.786 versos em latim. Segundo a tradição, ele rascunhou a obra nas areias de Ubatuba e memorizou os versos para, mais adiante, em São Vicente, passar para o papel. 

A Confederação

A Confederação dos Tamoios (cujo significado é “antepassados”) era um agregado de forças. A coalizão foi definida na localidade de Mangaratiba, no litoral fluminense, reunindo os chefes Aimberê, da aldeia de Ubatuba (Uwatiby)*, Pindobuçu, de Iperoig, Koaquira e Cunhambebe, de Ariró, e Guayxará, de Taquarussu-tyba. 

Sob a liderança de Cunhambebe e apoio de outras nações indígenas, como os goitacazes, carajás e aimorés, os tupinambás estabeleceram uma aliança contra os tupiniquins e portugueses. Para insuflar o levante contra os colonizadores, os franceses, interessados em se apossarem da baía da Guanabara e imediações, forneceram armas para a confederação. No período dos embates, Cunhambebe veio a falecer por infecção e foi sucedido na liderança por Aimberê. Entre suas ações, houve a tentativa, em vão, de cooptar os tupiniquins para que estes abandonassem os portugueses e se aliassem à Confederação dos Tamoios. 

As etnias conflagradas situavam-se ao longo do Vale do Paraíba, do litoral e da baía da Guanabara. A guerra foi travada, de um lado, pelas tribos tupinambás, reunidas sob o nome de Tamoios, e aliadas aos franceses que, estabelecidos na colônia da França Antártica, a partir de 1555, disputavam a região do Rio de Janeiro com Portugal; de outro lado, pelos portugueses aliados aos tupiniquins, que tentavam estabelecer seu empreendimento colonial e subjugar a revolta. 

A luta só terminou com a chegada de reforços portugueses, com o capitão Estácio de Sá, o que deu início à expulsão dos franceses e a ---------------------------------------------------------------------------------------- * Uwatiby é variação de Uwattibi, vocábulo escrito por Hans Staden, no livro “Viagem ao Brasil”, de 1557. A palavra passou de Uwattibi para Uwatiby, Uwatibi e Ubatyba, até a atual grafia Ubatuba. Plínio Airosa, em “Primeiras Noções de Tupi”, anota o vocábulo como “Uyba-tuba”. dizimação de seus aliados tamoios. A guerra é relatada, em parte, nos escritos do mercenário alemão Hans Staden, que foi prisioneiro dos tupinambás na região de Ubatuba, por nove meses, tendo acompanhado o chefe Cunhambebe em expedição bélica contra os portugueses e tupiniquins na região de Bertioga. 

Com a interferência dos jesuítas Nóbrega e Anchieta, fundadores de São Paulo, uma trégua foi selada no episódio conhecido como Armistício de Iperoig, no qual os portugueses foram obrigados a libertar todos os indígenas escravizados. 

José de Anchieta 

O padre José de Anchieta, jesuíta da Companhia de Jesus, nasceu em 19 de março de 1534, em San Cristóbal de la Laguna, Ilha de Tenerife no arquipélago das Canárias, Espanha . Faleceu, no Brasil, em 9 de junho de 1597, na localidade Reitiba ou Iriritiba, hoje município de Anchieta, estado do Espírito Santo. Seus restos mortais jazem no Palácio Anchieta, em Vitória (ES). Foi beatificado em 22 de junho de 1980 pelo papa João Paulo II e canonizado em 3 de abril de 2014, pelo papa Francisco.


Anchieta, com 19 anos de idade, chegou ao Brasil em 1553, a bordo da caravela que também trazia de Portugal o segundo governador geral do Brasil, Duarte da Costa, recém-nomeado pelo rei D. João III. Alguns meses depois de embarcar na Bahia, Anchieta já era um dos mais requisitados evangelizadores jesuítas. Recebeu, por exemplo, a incumbência de ajudar a fundar um colégio da Companhia de Jesus no planalto de Piratininga. Assim o fez, em 25 de janeiro de 1554, juntamente com o padre Manuel da Nóbrega, o que deu origem à cidade de São Paulo. 

Em 2023, vários templos reverenciam seu nome, como o da Catedral de San Cristóbal de La Laguna, nas Ilhas Canárias; e, no Brasil, do Santuário Nacional de São José de Anchieta, na cidade que leva o seu nome. A festa litúrgica em sua honra é celebrada em 9 de junho. Foi designado Copadroeiro do Brasil. As principais homenagens ao santo que viveu uma parte de sua vida em Ubatuba são: Rodovia Anchieta, em São Paulo; Monumento ao Padre José de Anchieta em Tenerife, Espanha; Discursos pronunciados em sessão solene no Congresso Nacional, em 24 de junho de 1980; Estabelecimento do dia 9 de junho, como Dia de São José Anchieta; Denominação de Palácio Anchieta à sede do governo do Espírito Santo; Estátua do Padre José de Anchieta, em São Vicente (SP). Em Ubatuba (SP), um monumento na praia Iperoig - com uma estátua de Anchieta, rodeada por estátuas de índios - exalta a celebração do tratado Paz de Iperoig. Além disso, o dia 14 de setembro é feriado no calendário oficial da cidade, em reverência à proclamação do armistício em 14 de setembro de 1563. Ainda em Ubatuba, um acidente geográfico tem o seu nome: Ilha Anchieta.

José de Anchieta ingressou na missão eclesiástica em Portugal. Era gramático, dramaturgo e poeta. No Brasil, viveu em São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Criou a primeira cartilha em língua tupi. Escrita em apenas 6 meses, descreveu e sistematizou no papel uma língua nova, até então apenas oral, baseando-se no modelo estrutural do latim. Com o nome “Artes de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil”, foi impressa em 1595, em Coimbra, Portugal. A gramática de Anchieta foi a segunda gramática de uma língua indígena. A primeira tinha sido a Arte de la Língua Mexicana y Castellana, do frei Alonso de Molina, publicada no México em 1571. 

Graças ao seu magnífico trabalho, o padre Anchieta realizou um dos princípios básicos da Companhia da Jesus: o de que todos os missionários deveriam aprender a língua da terra onde exerciam seu ministério, para empregá-la em vez de seu próprio idioma. De sua gramática foram lançadas 7 edições. Da primeira edição sabe-se de três exemplares: Um na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; outro na Biblioteca Vittorio Emanuele, Roma; e o terceiro no Arquivo da Companhia de Jesus, Roma. A partir da gramática de Anchieta iniciou-se o estudo do tupi, em Salvador, no colégio jesuíta. Aprender tupi valia para todos os que exerciam os serviços catequéticos missionários.

Anchieta escreveu poesias, cartas e autos. O conteúdo dos seus textos se referia aos conceitos morais, espirituais e pedagógicos. Inicialmente redigiu em castelhano e em latim. Depois, traduziu para o idioma português e para o tupi. 

Catequese 

Padre José de Anchieta dedicava-se a catequizar os indígenas, isto é, apresentar-lhes os preceitos cristãos. Tinha, ainda, especial atenção em se comunicar com os nativos. A preocupação com a língua local girava em torno da dificuldade que seria europeizar o novo mundo conquistado, sem se fazer compreender por seus moradores. Em São Vicente, entre os tupiniquins, aprendeu a língua tupi. Em 1595, escreveu “Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, a primeira gramática do Tupi - Guarani. 

Em menos de meio século os jesuítas ganharam a confiança dos nativos e transmitiram os preceitos e comportamentos cristãos. Tornaram-se, assim, a mais potente organização a serviço da Igreja Católica, nas palavras do estudioso em comunicação Luiz Beltrão, no livro “Folkcomunicação”. O êxito se deveu em grande parte ao esforço descomunal do padre José de Anchieta que, por décadas, observou as festas e rituais dos tupinambás e de outras tribos com os olhos de um antropólogo. 

“A noção de cultura histórica, dinâmica e flexível permite perceber nas inúmeras contradições presentes nos textos e discursos dos inacianos a imensa complexidade das relações de contato. Nessa perspectiva, os índios tornaram-se sujeitos ativos na colonização, respondendo a ela de formas variadas, buscando também, nas relações com os europeus, vantagens e benefícios de acordo com as culturas e organizações sociais, que igualmente se alteram no decorrer do processo histórico. É o que se pode depreender da vasta e diversificada obra de Anchieta, que inclui a Gramática da Língua Tupi, várias informações sobre a terra, seus habitantes e o desenvolvimento da colonização, cartas, poemas e os famosos autos” (Almeida, 1998). 

A atuação de Anchieta como catequista foi numa fase inicial de sua vivência no Brasil Colonial. Logo em seguida dedicou-se, principalmente, à instrução dos filhos dos colonos portugueses. Fez isto paralelamente aos estudos da língua e dos costumes dos gentios. Desta forma produziu uma vasta obra evangelizadora. 

Anchieta em “Terra Tamoia”

Em referência a José de Anchieta, a escritora Idalina Graça, nascida em Ilhabela e radicada em Ubatuba, no livro “Terra Tamoia”, às páginas 55 e 56, estampa:

O velho relógio da Matriz, na sua imperturbável marcha através das coisas e do tempo, marca meio dia. A praia, em quietude, vive nesse momento uma de suas horas mais belas, principalmente para os que compreendem a poesia do silêncio. Minha alma enxerga, nessa mansidão das coisas paradas, uma possibilidade de fuga para a região dos sonhos. Vai longe meu pensamento, como um corcel alado, vivendo outra personalidade. Volto ao passado, às mesmas praias aonde divago sentindo as carícias das alvas espumas eu vêm tocar meus pés descalços. Longe do mar, na verde e prata, sob o céu vivo e azul, emoldurado por um continente de sonhos, revela a inigualável artista, fonte prodigiosa de poesia, a Natureza. Na areia, matizada de conchas, o sol brinca, dourando-as. Meu espírito retrocede aos séculos que se foram. Impulsionada pela brisa do norte, balouça mansamente nas águas de Iperoig uma galera portuguesa. Um luso de compleição robusta, feições ríspidas, pele marcada pelo sol e pelos ventos dos trópicos, olha a beleza daquele quadro e seu pensamento vai longe.

– “Terra dos meus pais, jamais voltarei a ti! Não espero ter a ventura de voltar a estreitar nos braços os entes a quem amo e que lá ficaram! Nunca mais o meu olhar cruzará com o da mulher que tanto amei, nem verei o rouxinol em meu velho Portugal construir seu ninho junto à casa de meus pais!”. Assim meditava o português, levado pela saudade do povo distante, olhando as vagas esfrangalhando-se em cascaras de espumas reluzentes, nos rochedos de Iperoig. Mão amiga pousou-lhe sobre os ombros. Ouviu-se a voz meiga e suave de seu companheiro de exílio a murmurar-lhe aos ouvidos, diante daquele cenário agreste da terra brasileira, a mensagem de fé: – “Seremos fortes como as rochas que nos desafiam e nada nos poderá deter no áspero caminho! Nossa cruz não será demasiado pesada! O momento que passamos é digno de ser vivido! Tens, à tua frente, um futuro de glórias, terras a conquistar, gentios a dominar, e um dever a cumprir perante Deus e a Pátria”

Com a serenidade dos iluminados, assim falou o meigo filho de Tenerife ao moço português, levando esperança outra vez ao espírito vacilante do ousado navegante. E o luso, unindo o próprio pensamento ao de Anchieta, agradeceu a Deus o conforto com que o revigorava naquele instante. No dia seguinte, quando o sol veio, outra vez, iluminar a terra escolhida para abrigar o Santo Missionário, ali já não encontrou aquele homem dominado pelo desalento, que tivera um instante de desânimo diante da imensa tarefa que lhe coubera. Para o lusitano, em busca de outras paragens, misteriosas e desconhecidas, levando em sua galera um arsenal de esperanças, sonhos e ilusões, tendo por bússola aquela extraordinária fé, que Anchieta lhe transmitira nas alvas areias de Iperoig.

O jesuíta solitário une sua voz ao marulho das vagas, sem temer perigos, esperando sempre a cruel flecha dos Tamoios. Tomba os joelhos na areia úmida e ergue ao céu uma prece por toda a humanidade. Outrora, assim vibrou a fé de Anchieta.

Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Maria Regina Celeste de. Anchieta e os índios de Iperoig: reflexões sobre suas relações a partir da noção de cultura histórica. Revista de Ciências Sociais, v.29 N.1/2, 1998. 
ANCHIETA, Padre José. Cartas Inéditas. Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, edição comemorativa do 4º centenário. São Paulo, 1900. 
CONFEDERAÇÃO dos Tamoios. In: www.pt.wikipedia.org, acessada em Nov de 2023. GRAÇA, Idalina. Terra Tamoia. Editora Martins, São Paulo, 1967. 
STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Marburgo, Alemanha: 1557. Republicação da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: 1988. 
VIEIRA Celso. Anchieta. Cia. Ed. Nacional, 3ª edição, São Paulo, 1949. Índice Página Apresentação 3 Padre José de Anchieta 4 Tratado de Paz 4 A Confederação 5 José de Anchieta 6 Catequese 8 Anchieta em “Terra Tamoia” 9 * * *

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