Willy Aureli |
Tinha alcançado aquele presídio de tão tristes recordações, a bordo de um naviozinho da “Costeira”, que, por uma deferência toda especial à minha condição de jornalista, fez uma atracação fora do programa na ilha, que agora tem o nome do taumaturgo Anchieta. Lá permaneci uns dias, entrando em contato com todos os presos, ouvindo deles as lamúrias, as queixas, os apelos. Entre eles havia nada menos do que 16 completamente inocentes, vítima da sanha de erros policiais desalmados. Um era oficial de um transatlântico italiano e fora apanhado na faixa do cais de Santos, atordoado pelas bebidas, e que, depois de despido da sua brilhante farda, descalço, sem nenhum documento e espoliado do seu dinheiro, tinha sido metido no porão do navio que levava presos para a ilha. Trabalhava como motorista do diretor do presídio, enquanto a sua família, em Gênova, continuava desesperada pelo sumiço misterioso do ente querido.
Sucede que durante o período em que me encontrava na ilha dos Porcos, o naviozinho, que era o único elo ligado Ubatuba ao resto do mundo, pifou de vez, por não receber, a companhia a que pertencia, as subvenções governamentais que lhes eram devidas. Dessa forma fiquei ilhado também, apesar da responsabilidade que tinha em São Paulo em data certa, pois a minha reportagem deveria der o “prato forte” do número especial de aniversário do jornal.
Metido numa grande canoa, em companhia do presídio, alcancei a duras penas, devido ao mar revolto, a praia da Enseada, de onde, encarapitado no lombo de um cavalinho, cheguei a Ubatuba, então imersa no esquecimento dos paulistas.
Aboletei-me num vetusto casarão onde se localizava o hotel da terra. O único hóspede que lá encontrei foi o juiz de direito da pacata cidade. Havia um amigo a minha espera, Washington de Oliveira, então jovem farmacêutico e correspondente local das ”Folhas”. Até hoje essa amizade nos une fraternalmente. Ele foi o meu cicerone em Ubatuba, e, através do seu entusiasmo ao descrever as belezas rústicas do lugar, eu adentrei na arcana maravilha dessa pérola, mergulhada no marasmo das coisas esquecidas. E, pelas palavras cheias de sentimento regionalista e justificado entusiasmo pelo passado da histórica cidade, Passei a olhar o casario em ruínas, os velhos e sombrios sobradões, as candeias espetadas nas esquinas, os portais floridos, que atestavam passado brilhante, com outros olhos, bem diferentes daqueles que tinha, quando, suado, cansado, irritado, descera dos magérrimos costados da montaria que trouxera desde a Enseada.
Acontece que Ubatuba, nessa época, estava completamente isolada do resto de São Paulo, pois não existiam estradas para coloca-la em contato com as localidades vizinhas. Apenas uma tortuosa vereda, restos desbarrancados da antiga estrada imperial, que grimpava a imensa serra em demanda ao alto, e, de lá, até São Luiz do Paraitinga, numa extensão de 10 léguas bem mantidas, ou seja, 60 quilômetros.
O juiz, Washington de Oliveira e o então dono do hotel, deram-se ao trabalho de arrumar, para mim, uma condução. A única possível, um cavalo. Asseguraram-me que, alcançando S. Luiz, Lá encontraria condução mais confortável até Taubaté, a 60 quilômetros adiante.
Impossível, em rápidas palavras, dizer dos três dias encantadores que passei em Ubatuba. Retrocedi séculos, vivendo a vida primitiva, gostosa, bela, pura, entre gente de alma e coração cheios de bondade.
Como guia da viagem, teria aminha disposição o estafeta dos correios, que, em dias determinados, armado de uma garruchinha espanta mosquito, e carregando às costas um saco com pouca correspondência, galgava as íngremes encostas da serra para cumprir a sua missão, levando a mala postal até S. Luiz. Um herói esse homem. Iniciada a caminhada, que jamais esquecerei, ainda no sopé da serra, após estirão que parecia não ter mais fim, fui alcançado por um baiano tropeiro, que comboiava oito mulas robustas, e que, temeroso da viagem no meio da floresta, dera-se pressa em alcançar-nos, confessando a sua imensa satisfação em ter conseguido companheiros para a travessia. Foi o que me valeu. Valeu-me a sua tropilha, que o meu cavalo, após os primeiros quilômetros, não mais aguentou o meu peso. Pudera! Ele deveria ter sido nutrido com conchas da praia e estava exausto desde os primeiros passos.
Fomos subindo aos poucos, lentamente, ziguezagueando por baixo dos túneis esverdeados da densa floresta. Alguém tinha feito uma “espera” com espingarda de carregar pela boca, e, próximo a ela, encontramos os restos de uma respeitável onça pintada, já semidevorada pela vermina e exalando cheiro pestilencial. Muitos macucos pelas adjacências, fácil me foi abater um deles com o tiro de uma 32. Mais tarde, no alto da serra, devoramo-lo no espeto.
Subindo devagar fui notando os vestígios da velha estrada. A certa altura encontrei trilhos de estrada de ferro. O meu estafeta guia contou-me, então, que no tempo do império tinha havido uma estrada muito bem conservada, ligando o Vale do Paraíba ao porto de Ubatuba, por onde o café descia no lombo de burro para ser embarcado nos navios. Nos primórdios da República, tinha iniciada a construção e uma estrada de ferro para ligar o “continente” a Ubatuba, cousa que jamais aconteceu, devido à concorrência que favoreceu o porto de Santos.
Notei que não seria difícil desbastar a floresta que se assenhoreava da velha estrada e restabelecer uma via de comunicação razoável, ligando Ubatuba a Taubaté. Guardei para mim esse achado e fui continuando até São Luiz, onde, exausto, mas desejando exibir as minhas qualidades de perfeito ginete às moças bonitas que enfeitavam os balcões fronteiros ao hotel, desmontei tão bem que acabei sentado no chão, pois as pernas anquilosadas não corresponderam.
Qual não foi meu desespero quando soube que nenhuma condução havia entre S. Luiz e Taubaté! Eu deveria continuar a cavalo e sozinho, pois o baiano havia ficado para trás com a sua tropilha, e o estafeta dos Correios diluíra-se, após uma despedida apressada.
O dono do hotel foi procurar alguém que me quisesse alugar um animal e não tardou a aparecer com um cidadão que me pesou com os olhos, calculado exatamente as minhas arrobas. Depois tratou o preço, que aceitei por não estar em condições de discutir. – uma fortuna – 50 mil réis e mais 20 mil réis para o rapazinho que iria a pé comigo, para trazer o animal de volta. Assegurou-me, o dono do cavalo, que o mesmo era bastante robusto e aguentaria bem a viagem. E foi assim que no dia imediato, sentindo as dores da primeira cavalgada, sentei-me na estreita sela e dei começo à segunda etapa da minha inesperada aventura.
Começou a chover. Só tinha, sobre o corpo, um terno de brim e carregava na pequena maleta apenas duas camisas e alguns petrechos de toalete. Aguentei a chuva com forçada filosofia. Escorreguei-me da sela, por ter pranchado o animal, uma dúzia de vezes, enlameando-me até a raiz dos cabelos. E por volta das 23 horas, num estado deplorável, esfomeado, sedento, raivoso, cheguei a uma estranha estalagem em Taubaté.
O noturno da Central passaria às 2 da madrugada. O hoteleiro das proximidades da estação olhou-me com surpresa devido ao meu estado de... limpeza. Dando-me a conhecer, porém, aceitou-me de boa cara, fornecendo-me, apesar da hora avançada, ótima refeição. Às 2 em ponto – na época um milagre dos milagres – chegou o noturno da Central, e, pela manhã, estava em S. Paulo, onde um bom chuveiro e roupas limpas restituíram minha abalada personalidade. No mesmo dia escrevi a reportagem que se tornou famosa: “A ilha do Diabo Paulista”. E logo mais ia procurar em seu gabinete o General Cordeiro de Farias, então Secretário da Segurança em nosso Estado, para lhe entregar a lista dos inocente detidos na Ilha dos Porcos e apresentar-lhe um projeto, de aplicar os presos, que viviam na mais absoluta vadiagem, no restabelecimento da estrada, que o tempo e o abandono haviam destruído e que daria vida de novo a Ubatuba.
Os 16 presos inocentes receberam ordem de soltura imediata e os demais, com prêmios pré-fixados foram postos a trabalhar na estrada. E o antigo caminho ressurgiu, agora permitindo a passagem de automóveis, levando o oxigênio da civilização à coletividade daquela cidade esquecida. Missão cumprida. Não pensei mais em Ubatuba.
Eis que em 1936, lembrei-me, na época das férias, da cidade praiana. Resolvi, com minha tribo, descer pela estrada que eu ajudara a abrir. Metidos num fordeco despencamos serra abaixo. Eu, minha mulher, minha primogênita, dois cunhados, dois sobrinhos e bagagem, que mais parecia pertencer a uma companhia de operetas. Como coube tudo isso no carrinho e como fomo e voltamos sem, novidade, permanece mistério.
Foi quando conheci Idalina Graça, a nova proprietária do hotel instalado no imenso casarão assobradado. Pagava-se, nesses maravilhosos dias, a diária de 10 mil réis. E, olhem lá, havia quem achasse muito caro...
Aboletamo-nos, alegres, satisfeitos da vida, nos vastíssimos dormitórios que antes havia servido aos Cunhambebes da terra. Camas limpas, pregos nas paredes de madeira para pendurar as roupas. Nada mais. Mas havia tamanho coração de Idalina e no seu marido Albino, a mesa era tão farta, tão gostosa, que teríamos aceito até dormir no chão.
Dias maravilhosos aqueles! Esbaldamo-nos pelas praias. Regressamos totalmente conquistados por Ubatuba e durante todos os anos que se seguiram continuamos a gozar nossas férias na vetusta cidade. Houve interregnos. Minhas andanças pelo sertão; jornadas nem sempre alegres em minha vida particular. Depois retomei o ritmo até hoje. É em Ubatuba que somente consigo reequilibrar o meu espírito às vezes conturbado. Foi em Ubatuba que os meus filhos deram os primeiros passos nas areias da praia. Foi em Ubatuba que os meus netinhos fizeram o mesmo. Em Deus me protegendo e deixando-me esta estupenda vital idade que me é companheira, quiçá ainda veja meus bisnetos saltitar as suas primeiras andanças marítimas em Ubatuba, a feiticeira!
Voltemos ao que interessa.
Foi em 1938, quando já éramos hóspedes costumeiros no hotel Ubatuba, que eu “descobri” a escritora Idalina Graça, que hoje se apresenta com Terra Tamoia, fadada a esse sucesso que, já nesse ano da descoberta, eu profetizava em minha crônica da “Folha da Noite”, intitulada A Solitária de Iperoig.
Conta, Idalina, em suas páginas, como foi descoberta, e como o episódio lhe propiciou o começo de uma nova vida, arrancando-a ao limbo onde permaneceria indefinidamente, sempre temerosa de se abrir sobre seus escritos com desconhecidos. Ela trazia em si a potente força de sentir, de monologar, de alinhavar com as garatujas e 2º ano escolar, narrativas estupendas, observações maravilhosas que lhe desnudavam a alma poética, contemplativa, trancada num invólucro rústico. Famosa na terra de Ubatuba como emérita pasteleira, arte essa que a possibilitou amealhar o suficiente para incríveis empreitadas, Idalina, nos raros momentos de lazer e às escondidas do marido, que tinha ciúme dos garranchos da nobilíssima esposa, entregava a pedaços de papel, que arrancava de cadernos ou de agendas, tudo quanto lhe ia, em tumulto, no coração generoso, no cérebro claro, na alma adamantina!
Descobri o segredo de Idalina de forma insólita e graças a esse faro próprio de repórter sempre em busca de novidade. Enquanto aguardava um cafezinho na escura e atravancada cozinha do arcaico hotel, meti o nariz numas latas vazias, alinhadas em prateleiras, que disputava sua cor com o negro das paredes. Numa dessas latas encontrei uns escritos. E, neles, toda maravilha brotada da pena de uma escritora em potencial, de imensas possibilidades. Uma revelação!
Lancei-a, assim como anos depois e pelo mesmo jornal eu deveria lançar Carolina de Jesus. Nasci, pelo visto, com os pendores naturais de descobrir escritores inéditos e Monteiro Lobato, o saudoso mestre, deu-me pressa em ir conhecer essa 8ª maravilha, dedicando a ela a sua boa e meiga amizade, e constatando, as reais qualidades da escritora que eu revelara ao Brasil.
Dias sombrios, de luta, de amargor, pontilharam a vida de Idalina
Graça. Firme, porém, sólida em sua caminhada atribulada, permaneceu fiel aos seus propósitos de se tornar uma escritora. Nada a abateu. Eu lhe conheço todos os percalços e poderia dizer o quanto padeceu, não fora ferir essa incrível delicadeza de alma, que lhe é traço predominante. Conservo com carinho a sua amizade e sou largamente retribuído. Hoje é-me dada a honra de prefaciar seu trabalho, encontrando nele joias maravilhosas, simples, infantis às vezes, mas sempre joias puríssimas e fulgidas!
Terra Tamoia é um depoimento sobre usos, tipos e costumes de Ubatuba de outrora, antes do evento súbito que atraiu para ela o interesse de gente nova, que ali foi construir suas casas de recreio, colocando festões modernos nas belezas naturais, na mais linda cidade do litoral paulista, onde se aninham as mais belas praias brasileiras, e onda ainda se respira, a despeito do imenso caudal de visitantes, a pureza e a simplicidade de um passado não muito remoto de simplicidade e de pobreza.
Terra Tamoia é um repositório de cousas interessantes para a história do torrão pátrio. Idalina Graça com seu notável trabalho, doa à bibliografia nacional um capítulo de raro valor, um compêndio de lendas e estórias, um feixe de facetas folclóricas, que ainda será consultado por muito escritor, desejoso de saber notícias do passado do antigo porto de café de S. Paulo.
Idalina Graça é uma escritora que entrega, pelos seus méritos exclusivos, ao Brasil, uma gema, gema essa que brotou apenas dela, exclusivamente dela, absolutamente dela. Há, em seus escritos, verdadeiros arpejos. Há tocatas que comovem. Há harmonias que elevam o espírito. Há, sobretudo, singeleza e sinceridade!
Nenhum valor maior teria essa obra se Idalina Graça fosse formada por alguma faculdade ou diplomada por algum instituto de cultura superior. O valor de Terra Tamoia está no extraordinário esforço de alguém que não estudou, não conheceu autores, e que conseguiu escrever o livro, palavra por palavra, juntando-as para formar sentenças, frases, episódios d, de forma escorreita, assimilável e amiga!
Willy Aureli
Prefácio ao livro “TERRA TAMOIA”
Um comentário:
Deve ser um maravilhoso livro,lembranças do início do século passado.
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