ISC - Idealizado em 1993, o Instituto Salerno-Chieus nasceu como organismo auxiliar do Colégio Dominique, instituição particular de ensino fundada em 1978, em Ubatuba - SP. Integrado ao espaço físico da escola, o ISC tem a tarefa de estimular a estruturação de diversos núcleos de fomento cultural e formação profissional, atuando como uma dinâmica incubadora de empreendimentos. O Secretário Executivo do ISC é o jornalista e ex-prefeito de Ubatuba Celso Teixeira Leite.
O Núcleo de Documentação Luiz Ernesto Kawall (Doc-LEK), coordenado pelo professor Arnaldo Chieus, organiza os documentos selecionados nos diversos núcleos do Instituto Salerno-Chieus (ISC). Seu objetivo é arquivar este patrimônio (fotos, vídeos, áudios, textos, desenhos, mapas), digitalizá-los e disponibilizá-los a estudantes, pesquisadores e visitantes. O Doc-LEK divulga, também, as ações do Colégio Dominique.

LEK - Luiz Ernesto Machado Kawall, jornalista e crítico de artes, é ativo colaborador do Instituto Salerno-Chieus (ISC) e do Colégio Dominique. É um dos fundadores do Museu da Imagem e do Som de São Paulo e do Museu Caiçara de Ubatuba.

sábado, 29 de agosto de 2015

HERMANN PORCHER GUATEMALA, 1902

Luiz Ernesto Kawall e Herman Porcher

No Brasil, 1912, (pai negociante), e definitivo: 1920 (SP). Estudou na Europa (Escola Técnica, Itália). Andanças Guatemala e Europa. 1931 estabeleceu-se SP com numismática – compra e venda de moedas antigas. Até hoje.

Desde criança gostava de fotografias. Teve várias máquinas, tirava fotos Europa, Guatemala. Brasil. Já tirou milhares de fotografias, que guarda espalhadas e em álbuns. Em 1933 usava u’a Kodak especial (6 x 9). Anos depois foi roubada em Ubatuba. 

Primeira viagem a Ubatuba

Em 33, já estabelecido e, SP, gostava de jogar pôquer. Tinha uma turma de amigos – Alexandre Campi, Humberto Campi, Rafael Campi, Argemiro Rodrigues e outros – e jogavam até ½ dia, quando a sirene de “A Gazeta” tocava (o escritório de Porcher era ao lado do jornal, na Líbero Badaró). Como prejudicava a saúde, resolveram acabar com o jogo e viajaram “para um lugar onde não houvesse jogatina, não fosse o interior e pudessem fazer algum esporte a beira mar”. Ubatuba, no Litoral Norte, indicação que veio por intermédio de Antonio de Barros, comerciante, que conhecia Ubatuba. Seguiram por via marítima, único meio que havia para chegar a Ubatuba, pelo “Ubaituba”, da Cia. de Navegação Costeira, que fazia regularmente a linha Florianópolis – Rio. 

Chegamos a Ubatuba por volta das 10 horas da manhã, após o “Ubaituba” deixar presos e mantimentos no Presídio da Ilha Anchieta. Nós íamos recomendados – nós, Hermann Porcher e o Alexandre Campo – pelo Antonio de Barros ao dono do Hotel Ubatuba, Sr. Armando Bohn. Ao chegar, não o encontramos. D. Idalina Graça – caiçara local, hoje poetisa e escritora – era a proprietária, com o marido, Albino Graça. Ficaram nesse hotel – almoçaram fartamente, fizeram a barba e como pensamos que aquela terra era uma espécie de safári, pusemos roupas de caçador – culotes, perneiras, cepa, etc., que tínhamos guardado da Revolução de 32. Saímos para dar u’a volta na praça Nóbrega, no centro da cidade, as ruas eram de terra e cheias de capim. Era junho – tempo frio – por volta de 5 horas, começava a escurecer. 

Nisso, ouvimos um ruído de avião, era um monomotor que sobrevoava a cidade e soltava 2 rojões (verylight) que iluminou tudo. Vi que o avião procurava pouso e que todos caiçaras corriam em direção ao Cruzeiro (a cruz de Anchieta, que rememora junto à praia do Itaguá a Paz de Iperoig). Fomos também ver o que acontecia na praia e chegando lá vimos o avião parado e um pouco antes 2 aviadores e uma roda de curiosos em volta. E tinha um senhor de tamancos que falava com os aviadores – era o prefeito local, Deolindo de Oliveira Santos – mas estes acenavam e não entendiam nada. Esse senhor gritou: – Vai chamar a Romana (uma professora, enteada dele, que sabia francês). A Romana veio e pelo jeito os aviadores continuavam a nada entender... 

Aí, eu e meu amigo,quando vimos essas dificuldades, nos dirigimos aos 2 aviadores e perguntei a um deles, o mais alto, em francês: – Ques que vous voulez? Eles falaram que foram obrigados a aterrizar lá porque o aparelho de rádio deles tinha pifado e para a frente (S. Sebastião) estava fechado. Além disso, o campo de pouso da companhia – Companhie Generale Artopostale – estava longe, era na Praia Grande de Santos. Eles disseram que precisavam telegrafar com urgência para Santos e perguntaram se tinha telégrafo aquele lugar. Perguntei ao senhor de tamancos se tinha telégrafo e ele diz que sim, ficava junto à Igreja e disse também para transmitir aos aviadores que eram considerados hóspedes oficiais da cidade

Aí fomos ao telégrafo – uma verdadeira procissão pela Rua Condessa de Vimieiro, os 2 aviadores, eu e meu amigo e 309 ou 40 caiçaras. Eles perguntaram para mim qual era o melhor hotel de Ubatuba – mas como tinha chegado aquele dia, não sabia, perguntei ao tal senhor de Tamancos que indicou o Hotel Felipe, um antigo Hotel de Ubatuba, recentemente demolido. Transmiti o recado e os aviadores perguntaram para mim onde estava hospedado e respondi que no “Ubatuba Hotel” junto com o amigo Campi. Éramos os últimos hóspedes do “Ubatuba”, únicos e primeiros da nova fase, sob a direção de Idalina. – Então lá ficamos – o mais alto respondeu. Fomos ao telégrafo, passaram o telegrama – não sei se um ou vários, mas só poderia ter sido em francês, não me perguntaram nada. Disseram que precisavam telegrafar, pois vinham de Natal, em escalas, até o Rio, e iriam a Santos. Levavam só malas postais. Achavam que em Santos o pessoal da Companhie estaria apreensivo com a demora em sua chegada. 

Saímos do telégrafo e voltamos pela mesma calçada, até o Ubatuba Hotel, onde está o atual Bar Cruzeiro e o Cinema Iperoig e o cortejo todo atrás, inclusive o homem de tamancos. Entramos no Hotel e disse a D. Idalina: – Trouxe para a senhora dois novos hóspedes e peço que prepare uma boa janta para eles. Perguntei para eles se desejavam tomar alguma cerveja ou aperitivo e eles disseram que gostariam de tomar um vinho. Falei com D. Idalina e ela disse que não tinha vinho e respondeu: – Não tenho, fale com o Prefeito, ele está aí. Quem é o prefeito? – Aquele senhor que está na janela, o “seu” Deolindo. Aí me dirigi a ele – o Hotel ficava na esquina da Rua Salvador Correa x Praça da Igreja (Rua Condessa de Vimieiro e estava todo cercado dos caiçaras, por causa daquele fato inédito, um “acontecimento” na cidade, a chegada de dois desconhecidos, falando língua estranha e que chegaram num avião que pousou na praia) – era o homem dos tamancos. Perguntei se ele tinha um bom vinho e ele disse: – Pode deixar, eu arrumo. E saiu, atravessando a caiçarada e a Praça. E voltou com u’a garrafa de vinho francês e que eu mostrei ao aviador alto que disse: – Mas, onde arranjou isto? Este vinho na França custa um dinheirão! Comentou com o navegador, gostaram, ficaram contentes. 

Nessa altura já eram umas 7 da noite, havia escurecido totalmente, sentamos à mesa, nós quatro e começamos o jantar. D. Idalina preparara um lauto jantar – tinha peixe, uma tainha recheada, frango ensopado, arroz e feijão, outras coisas. De sobremesa, uma espécie de compota de mamão, vermelha, divina. Os 2 aviadores comeram à farta e saborearam, também deliciados, conosco, o vinho.

Conversamos durante o jantar sobre aviação, que estava nos primórdios. Até dei a ele uma foto do “Grof Zepelim”, que fizera em SP, em 1933. Agradeceu, guardou-a e disse que apesar dos zepelins atravessarem o oceano diretamente – da Europa á América – preferia o avião, que tinha “mais futuro”, como meio mais rápido de transporte. E a conversa se estendeu sobre aviação e os caiçaras até tinham se dispersado – só assistiram o começo do jantar. Depois disto nos dirigimos outra vez onde estava o avião, pois os aviadores tinham dado ordem ao prefeito de colocar alguém para guardar o monomotor. Realmente tinha um caiçara dentro do avião e mais um fora, para ninguém, mexer nele. Os outros caiçaras brincaram – Tião, João – não me lembro mais o nome – cuidado, de repente o avião levanta vôo e você sai voando. O caiçara meio amedrontado sorria amarelo. 

O aviador alto e o navegador examinaram o avião, viram que tudo estava em ordem e nós regressamos ao hotel. Sentamos de novo na sala de jantar, ficamos conversando mais um pouco e eles se retiraram para dormir, subindo ao primeiro andar, onde D. Idalina arrumara seu quarto, que dava pra a praça. Eu e o Campi estávamos no quarto da esquina. Seriam umas 9 horas, já estava tudo escuro, pois às 8 horas da noite a luz acabava pois a turbina era alimentada  pela água da represa que, àquele horário já  acabava... O hotel funcionava à luz de velas e por esse horária era fechado, e, logo, Ubatuba não tinha mais ninguém na rua. 

No dia seguinte, um outro capítulo se registrou. Descemos para tomar café – uma oito horas da manhã – e os aviadores já estavam lá. Já tinham descido e já haviam saído o hotel antes. Eu e o Campi bebemos leite, comemos pão com geleia, manteiga e fomos até a praia. Vimos então o piloto mais alto tirando gasolina, numa lata, do avião e despejando o líquido na areia. Diversas latas de querosene foram assim cheias e jogadas ao chão. Estava aliviando o peso do avião. Nesse instante fizemos 3 fotos – aliviando o avião, comigo, o piloto com seu amigo Campi e as pessoas que circundavam o avião. 

Aí deu instruções para mim e o Campi para avisar os caiçaras – novo grupo deles estava em volta do aparelho – que iam tentar levantar voo e pediam para que nós disséssemos aos caiçaras para segurar a asa do avião, tanto dum lado como do outro, enquanto eles iam aquecendo o motor. Quando saísse, daria um sinal, levantaria o braço, largaríamos as asas e o avião sairia com impulso do areão grosso daquela plataforma da praia (onde hoje está o jardim fronteiriço à cidade). Tudo foi feito como ele pediu e quando o piloto fez o sinal, gritei: – Larga. Todo mundo largou e o avião já saiu pulando, as rodas batendo no chão, na direção da praia do Itaguá no rumo sul (S. Sebastião – Santos). A uns 300 metros o avião inclinou em direção do mar, à esquerda e dado o desnível da praia – que é de tombo – o avião pegou impulso e subiu, passando, depois de sobrevoar o mar, a baia, à direita em cima do morro do Tenório, desaparecendo no horizonte, rumo a Santos. 

Os comentários dos caiçaras eram de surpresa, pois o avião subira do campo improvisado da praia, que tinha na parte plana apenas ondulações e mato. Mais adiante, tinha jabuticabeiras e goiabeiras – hoje seria defronte ao cemitério. Essas árvores foram cortadas, por um prefeito, anos depois. Voltamos ao hotel e encerado o episódio, passamos, eu e o Campi, a gozar as delícias de umas férias em Ubatuba, Ficamos uns 30 dias lá, esperando a segundo volta do navio, “Itaituba”, para regressar a Santos. Andamos a cavalo, conhecemos as praias principais – Tenório, Grande, Enseada, até Santa Rita, que me maravilhava. Anos depois, comprei toda essa praia, em negócio indicado com um padre, o Pe. Ovídio Simon, por 10 contos – onde tenho casa até hoje. Dividimos a praia pela metade, conservei a minha, mas o padre vendeu a sua. Passei a freqüentar Ubatuba, onde vou no mínimo de 15 em 15 dias, de mês em mês, em viagem de carro, que leva folgadamente 4 horas... O “Itaiutuba” saia de Santos às 18 horas e chegava a Ubatuba, na Prainha, onde hoje se situa a casa de Francisco Matarazzo Sobrinho (o “Ciccillo”, ex-prefeito da cidade), lá pelas 10 da manhã, levando umas 16 horas..., passando por São Sebastião, Caraguatatuba e Ilha Anchieta. 

Muito tempo depois, lá por 1950 e poucos, quando Saint Exupéry começou a ficar falado e famoso, soube que era ele o piloto alto, de maneiras educadas, gentil, que descera em Ubatuba, com o aparelho de rádio em pane, em Ubatuba. Não tomei providencia alguma, mas estranhei fatos que se contavam a respeito, inverídicos. Fui realmente o anfitrião, cicerone e intérprete de S. Exupéry em Ubatuba, como relatei e cujo depoimento pode ser comparado com minhas fotos – únicas que se tiraram na ocasião – e por outras testemunhas orais e visuais que possam surgir. Em 33 Ubatuba era o fim do mundo, não havia nem máquina fotográfica lá. Guardei as fotos – que eu mesmo revelei no próprio hotel – utilizando a escuridão noturna, uma lanterna vermelha com vela e ácidos e bacias de vidro que levava comigo. Essas fotos, em SP, mostrei-as a amigos e nunca foram publicadas. Agora, por solicitação do jornalista LEK, cedi-as ao “Estado de S. Paulo”, bem como postei, pela primeira vez com tantos detalhes, ao menos, este relato. S. Paulo, 16.8.73

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