A INCRÍVEL HISTÓRIA DE UM POUSO EM UBATUBA
Célia Regina e Léon Antoine |
Era uma tarde luminosa do mês de junho de 1933 em Ubatuba, época de tantos peixes que as tainhas podiam ser apanhadas na praia, apenas com as mãos. Época em que os parcos 800 habitantes da cidade viviam ainda o espanto de seu primeiro contato com um automóvel, ocorrido poucas semanas antes. Mas nessa tarde o espanto seria maior: sem qualquer aviso ou preparação na praia do Cruzeiro, centro da cidade - cujas árvores haviam sido cortadas exatamente para uma emergência desse tipo na Revolução de 32, mas nunca sucedida - desceu um avião da Cia. Aero-Postale, que fazia a linha aérea regular entre França e Argentina. Nos 11 mil quilômetros do percurso passava pela costa atlântica brasileira e teria descido em Santos, na base aérea da Praia Grande, não fosse pela má visibilidade.
Léon Antoine |
Antoine, como esclarece hoje, após mais de 20 anos de pesquisa o jornalista, museólogo e pesquisador Luiz Ernesto Kawall, não era um prenome. Tratava-se do piloto Léon Antoine, também um dos grandes ases da aviação francesa em todos os tempos, com mais de 21 mil horas de voo, recordista mundial de voo livre com um tempo de 8 horas e 20 minutos, detentor da Legião de Honra e hoje em dia, aos 84 anos, aposentado e vivendo num bonito sítio em Javari, no Estado do Rio de Janeiro. Mas disso só se sabe agora. Tanto no folclore quanto na história de Ubatuba, o visitante que caiu do céu naquela tarde de 1933 acompanhado de um telegrafista chamado Chauchat, era mesmo Saint-Exupéry, embora em nenhum de seus livros se encontre uma única palavra sobre tal aventura.
Antoine de Saint-Exupéry |
Kawall começou sua pesquisa a partir de uma notícia publicada em 9 de novembro de 1964. “Essa história foi criada como um conto de fadas. Em 1933, Ubatuba, isolada no Litoral Norte, onde só se chegava por mar ou então pelo céu – e aí só por acidente – estava reduzida a 110 casas, todas mais ou menos em ruínas e em dez anos poderia acabar. Matava-se peixe a paus e apanhava-se milhares de tainhas cujos cardumes vinham dar á praia e eram enterrados como sobras. Quando o aviãozinho desceu, um grupo logo correu à praia do Cruzeiro e cercou a nave. Hélice parada os tripulantes desceram, foram guiados por um agitado cortejo popular até a casa do radiotelegrafista da Aeropostale, Gilberto Nogueira Brandão. Léon Antoine e Chauchat queriam ficar hospedados em sua casa, mas o telegrafista não tinha acomodação suficiente e isto chegou até a causar um pequeno desentendimento.” A partir daí, Léon Antoine e Chauchat foram considerados hóspedes oficiais da cidade pelo então prefeito Deolindo de Oliveira Santos (aliás, tio do historiador Filhinho) e levados para o Hotel Felipe, de pau-a-pique, porém de linhas coloniais, hoje já demolido.
Hotel Felipe, em guache de João Teixeira Leite |
Nas lembranças de Antoine, levado a Ubatuba 52 anos depois por Kawall, ele e Chauchat viveram uma noite memorável, regadas por duas garrafas de um inesquecível vinho Sauternes, raro e caro até mesmo na França. Após o justo sono, os franceses, bem cedinho, no dia seguinte voltaram à praia, com o propósito de retirar do avião uma parte do combustível, ofertados à população, facilitando a decolagem. Antoine se lembra que chegaram com todo o tipo de vasilhame, de latas até penicos.
Por depoimentos, sem nenhuma imagem, especula-se sobre a presença de Saint-Exupéry em Natal, na Praia Grande, em Itaipava, em Pelotas e Porto Alegre. Mas a descida em Ubatuba tornou-se um mito tão forte que envolveu, ou foi corroborado, até por uma especialista imbatível na biografia do escritor-piloto-aventureiro, a dominicana irmã Rosa Maria. Ela ficou nacionalmente conhecida ao responder sobre Saint-Exupéry no programa O Céu É o Limite, tendo depois disto escrito um livro sobre ele. No prefácio fazia referências a pousos forçados em Santos, Praia Grande e Ubatuba. Mas, Kawall explica, irmã Rosa Maria foi das primeiras a alertá-lo de que Ubatuba tinha poucas possibilidades de ter sido pelo menos uma vez incluída em seus roteiros.
Washington de Oliveira - "Filhinho" |
A saga exuperyana foi confirmada pelo historiador e ex-prefeito Filhinho: “Quando o avião desceu houve aquele burburinho, o aparelho foi cercado pela população. Um húngaro, Júlio Kertz, tentou falar com o piloto em alemão, mas ele não entendeu”. Ele lembra que “no dia seguinte os franceses ainda passaram a pé pela frente de casa, junto à praça da Matriz, se despediram com um au revoir e foram embora. Não sei se passaram telegrama pelo correio, acho que não, pois se a própria Air France (nome da Aero-Postale de 1933 em diante) tinha estação telegráfica não precisariam disto”. Filhinho informou que não há mais registro dos livros do hotel porque seus proprietários morreram. Mas conseguiu descobrir o telegrafista Gilberto Brandão, da Air France, morando em Niterói e este confirmou numa carta “a estada de Saint-Exupéry entre nós”, embora sem conseguir precisar exatamente a data.
– Quando os franceses pediram vinho o prefeito foi buscar. O mais alto ao ver a garrafa exclamou: "Mas onde o senhor arranjou isto? Na França este vinho custa um dinheirão!” Conversamos sobre aviões e a linha aérea francesa para a América do Sul e também sobre os voos do Zeppelin, que eu tinha fotografado em São Paulo naquele mesmo ano. Depois do jantar fomos ver o avião na praia, um caiçara entrara na cabine e estava divertindo-se. “Cuidado, João, o avião pode levantar voo”, alguém gritou, e ele saiu correndo de medo.
Porcher contou também que, “por volta de 50 e poucos, quando Saint-Exupéry começou a ficar falado e famoso, eu soube que aquele homem alto e gentil que descera em Ubatuba era ele”. O fotógrafo morreu antes de desfeito o equívoco. Mas com as fotos na mão, Kawall foi em frente. Uma das primeiras pessoas que procurou foi a dominicana Rosa Maria, que não pode dizer com certeza se nas fotos estava ou não seu amado Saint-Exupéry. Talvez no lugar do escritor piloto estivesse outra celebridade, o grande pioneiro da aviação e grande herói Jean Mermoz, que também pilotara para a Generale Aero-Postale. Kawall tentou Joseph Halfin, da Air France, e escreveu cartas para a França, mas nada de levantar com certeza a identidade dos franceses que pernoitaram em Ubatuba.
Jornalista Luiz Ernesto Kawall coletando informações. |
Jean Mermoz |
A verdade começou a aparecer em setembro do ano passado (1985), quando se comemorava a travessia do Atlântico por Mermoz e a TV Globo entrevistou o jornalista francês Jean-Gérard Fleury, correspondente da revista Le Point. Ao vê-lo falar sobre o heroísmo pioneiro de Mermoz, Kawall intuiu que poderia ter dele um esclarecimento definitivo. Tinha razão. Fleury, que foi amigo de Saint-Exupéry, imediatamente se interessou pelo assunto, a partir de uma conversa telefônica. Viajou para a França e lá recebeu uma carta do jornalista brasileiro, com várias perguntas. Entre as respostas, a de que “as fotos enviadas não são de Saint-Exupéry” e “Saint-Exupéry nunca teve acidente no Brasil”. E completava: “Achando muito simpática sua pesquisa sobre um episódio acontecido em Ubatuba, tenho grande prazer em completar as informações solicitadas. O avião que pousou naquela cidade em 1933 era pilotado pelo veterano comandante Leon Antoine, acompanhado pelo radiotelegrafista Chauchat. Hoje ainda Antoine se lembra da triunfal acolhida tanto pelo prefeito como pelo povo da cidade e evoca sempre com emoção um vinho Sauternes de admirável paladar, assim como suas conversas com o prefeito e um cidadão alemão que falava francês. Quando lembrei a Antoine este episódio ele se comoveu e falou de sua grande vontade de rever o lugar do acidente e as pessoas que lhe prestaram tão fraternal assistência”.
Sr. Lindolfo, último a direita, de chapéu e paletó branco, observa o avião, em 1933. |
Em 1985, sr Lindolfo aponta o local do pouso. |
Antoine, entre muitas lembranças, conta que na hora da partida o dono do Hotel Felipe lhes ofereceu a compra do estabelecimento, “por seis mil contos, em moeda da época. Deve ter sido por causa do meu nome, Léon Antoine, que mais tarde se passou a acreditar que Saint Exupéry teria dormido na cidade. Eu era mesmo parecido com ele. Não apenas nas feições, mas também pela altura. Só que ele andava mais curvado do que eu. Além disso, Saint-Exupéry nunca fez regularmente a linha para a América do Sul, mas como passou dois anos em Buenos Aires certamente andou por aqui. Não foi meu amigo íntimo, mas eu o conheci bem, era um pouco do mundo da lua...” O piloto falou a Kawall de sua vontade de rever Ubatuba.
Luiz Ernesto Kawall, Léon Antoine e Célia Regina. |
O capítulo final dessa história que remete a memória aos tempos da aviação, à lembrança de homens como Saint-Exupéry, Mermoz, Guillaumet e Dumesnil, foi encerrada a algumas semanas: Léon Antoine, após 52 anos, retornando a Ubatuba. Revendo os mesmos cenários hoje muito mudados, impossibilitado de hospedar-se no colonial Hotel Felipe, que não existe mais, para abrigar-se sob as sofisticadas quatro estrelas do Palace Hotel. As testemunhas da época são também poucas.
Célia Regina, Léon Antoine e Filhinho |
Mas lá estava ainda Filhinho, o historiador, farmacêutico, ex-prefeito. O homem que ajudara cimentar um mito e que assistia à definitiva destruição do seu atraente mistério. Ubatuba, cujas areias receberam escritos de Anchieta, cujos índios foram introduzidos pelo padre Nóbrega aos rudimentos do que o Ocidente chama de civilização, cujas paisagens extasiaram o alemão Hans Staden, teria de abrir mão de sua mais palpitante história contemporânea: o Pequeno Príncipe jamais passou uma noite no Hotel Felipe.
Edição de textos e fotos após consulta a Luiz Ernesto Kawall, em julho de 2015, a partir de reportagem de Edmar Pereira, publicada no Jornal da Tarde em 11/1/1986 .
2 comentários:
Luiz Ernesto, parabéns pelo blog e gostaria de divulgar alguns de seus posts em nosso site www.curiosidadesdeubatuba.com.br, claro que mantendo e dando crédito para seu trabalho e fazendo link de site para seu blog. abraços, Edson Conti contato@curiosidadesdeubatuba.com.br
Luiz Ernesto Kawalk é uma alma inquieta. Fiquei assombrada com a energia, a vitalidade e inteligência desse grande homem. Foi muito enriquecedor conhecê-lo.
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