ISC - Idealizado em 1993, o Instituto Salerno-Chieus nasceu como organismo auxiliar do Colégio Dominique, instituição particular de ensino fundada em 1978, em Ubatuba - SP. Integrado ao espaço físico da escola, o ISC tem a tarefa de estimular a estruturação de diversos núcleos de fomento cultural e formação profissional, atuando como uma dinâmica incubadora de empreendimentos. O Secretário Executivo do ISC é o jornalista e ex-prefeito de Ubatuba Celso Teixeira Leite.
O Núcleo de Documentação Luiz Ernesto Kawall (Doc-LEK), coordenado pelo professor Arnaldo Chieus, organiza os documentos selecionados nos diversos núcleos do Instituto Salerno-Chieus (ISC). Seu objetivo é arquivar este patrimônio (fotos, vídeos, áudios, textos, desenhos, mapas), digitalizá-los e disponibilizá-los a estudantes, pesquisadores e visitantes. O Doc-LEK divulga, também, as ações do Colégio Dominique.

LEK - Luiz Ernesto Machado Kawall (1927-2024), jornalista e crítico de artes, foi ativo colaborador do Instituto Salerno-Chieus (ISC) e do Colégio Dominique. É um dos fundadores do Museu da Imagem e do Som de São Paulo e do Museu Caiçara de Ubatuba.

20 novembro 2024

Rumo aos 50!

Letras Ubatubenses

Tarrafa Literária


Letras Ubatubenses

MÃE MENINA
João Paulo Naves Fernandes
outubro 21, 2013
O filho
quase uma boneca,
de tão nova.

A criança
e a criança da criança.

Entre os dois
uma fantasia órfã diverte
no percurso antecipado.

Algo tardará amanhã
do tempo que não veio
que se foi.

Algo se suportará sem razão.

(Poema "Mãe Menina" do livro "Dito pelo não dito")

Letras Ubatubenses

COAQUIRA E O EMISSÁRIO DO REI 

Paulo Andrade 

“Voltam os Tamoyos a Iperohy, enterram

os seus mortos, e Coaquira cura os feridos.

(Gonçalves de Magalhães in Confederação dos Tamoyos) 

Ubatuba, Capitania de São Vicente – 1550

Coaquira estava em sua oca, quando foi chamado por um índio da aldeia:

— Murumuxaua, tem visita!

— Quem é? — Inquiriu o chefe da Aldeia Iperoig.

— Homem branco português. Disse que tem urgência em falar com o murumuxaua.

— Mande entrar! — ordenou o superior iperoiguense.

Um homem de meia idade, barbudo, com roupas pesadas entrou no recinto da oca e saudou;

— Vida longa a Coaquira, bravo chefe de Iperoig!

— O que Portugal quer de Coaquira? — perguntou rispidamente.

O homem continuou:

— Sou emissário de Dom João III, enviado diretamente ao senhor. O rei sabe de suas habilidades de cura e precisa de sua ajuda.

— Na casa do rei tem os melhores curandeiros brancos.

— Sim, mas não conseguem a cura.

— Tem coisas que ninguém pode mudar, porque já estão escritas nas leis do céu.

— O que o senhor quer dizer?

— Diz a João III para aceitar seu destino. Coaquira só pode ajudar o rei a sofrer menos.

— O que o senhor recomenda?

— João sofre da doença da tristeza. É o peso do reino. Seu governo o escraviza. Tem muitas dívidas. É considerado o rei mais pobre da Europa. Seus pares também reis se referem a ele com chacota. Não pode pagar as dívidas dentro e fora de Portugal com os pesados juros. Ele queria estar livre da carga, mas não pode. Isso o faz sofrer da doença da tristeza.

Ele só pode se livrar do fim que lhe está escrito se deixar o trono. Ele passa a noite pensando nisso, não dorme. Vejo que o rei cochila no trono, enquanto despacha.

— Como o senhor sabe de tudo sem nunca ter visto o rei?

— Está tudo escrito e Coaquira lê nas linhas do livro  do céu. Seu rei não come direito, tem problemas de intestino, a comida não lhe faz bem.

— O que fazer murumuxaua?

— Coaquira não pode mudar o que o plano superior determinou, mas leva isso! É Cambará. Vai ajudar o rei a dormir e comer melhor. Mas não pode mudar o que vai acontecer daqui a sete anos. O rei deve aproveitar esse tempo para viver bem.

— Como é que se usa isso Murumuxaua?

— O rei vai fazer chá da folha e tomar de manhã antes de comer e à noite, antes de dormir. Um vaso pequeno basta por vez.

— Obrigado murumuxaua, o rei mandou-te esse agrado. — disse o fidalgo estendendo uma bolsa de moedas de ouro.

— A ajuda de Coaquira já foi paga pelo céu, Tupã já pagou. Agradeço a ajuda, mas prefiro que dê às crianças pobres dos orfanatos de Lisboa.

— Será feita a tua vontade murumuxaua.

O emissário saiu levando o pacote de ervas dado por Coaquira. A cada seis meses o emissário voltava para renovar a carga do remédio que ajudava o rei a se sentir melhor.

Coaquira seguiu ajudando o rei e a quem o procurava para curar seus males. Era murumuxaua, com boa vocação para Pajé.

16 novembro 2024

Letras Ubatubenses

A BONECA
Paulo Andrade
A menina sapeca
Que ri e que apronta,
Com uma boneca
Se acalma, se encanta.

A menina acanhada
Que quieta se fica,
Com uma boneca
Sorri e modifica.

A menina que ao espelho
Se vê e se especta,
Diz pra si: assemelho
Ser essa boneca.

A menina boneca,
boneca menina,
Sorri e não peca
Com a pequenina.

Pois nela se vê
E nela prospecta,
O desejo de ser
Eternamente boneca.

Letras Ubatubenses

A BOLA
Paulo Andrade
Dentro da sacola
que levo no braço,
No caminho da escola,
Ocupa um espaço 
Junto com a cola e
o caderno, a bola.

Andando, gasto sola,
Eu e meus colegas.
Uns andam como mola,
outros como cabra-cega.
Outros tocam viola,
Mas ninguém mesmo enxerga
Onde está a minha bola.

De um lado a turma embola
Andando no canto da estrada.
Carlinhos o tênis esfola
Andando na caminhada.
Correndo, Juninho extrapola,
Mas ninguém sabe nada
Sobre onde está minha bola.

É que não quero mostrar,
sei da vontade que assola,
a garotada a querer brincar.
Se eu mostrar a bola,
Ninguém sairá do lugar,
Ninguém chegará à escola.

Letras Ubatubenses

O MENINO MODERNO
Paulo Andrade
Ele passa as horas
Perdido no celular.
Uma rede social agora,
Depois pega a jogar.

No seu mundo navega
em mares virtuais.
Não ouve e nem enxerga,
quando lhe chamam seus pais.

O certo é que o menino
do futuro faz parte.
E vaga bem peregrino
no mundo onde faz arte.

Letras Ubatubenses

OLHAI OS LÍRIOS
Paulo Andrade
Olhai os lírios do campo!
Estão sujos na rua
Não se vê mais o seu branco
Sob o sol ou sob a lua

Olhai os lírios do campo!
Eles têm que trabalhar?...
Muitos não tem mais seu canto,
Um lugar para morar.

Olhai os lírios nas ruas!
Será que não tem pais?...
Me angustia as angústias suas
E o futuro que se faz.

Letras Ubatubenses

O PATINETE
Paulo Andrade
No natal
A menina pediu
de forma especial
Um presente que viu.

Estava bem à vista,
Em uma loja da rua.
Ela pediu ao lojista
O preço da prenda sua.

O nome da menina
Vou dizer: é Elizabete
E o presente, imagina?...
É um patinete!

Letras Ubatubenses

DORES AUSENTES
João Paulo Naves Fernandes
Ninguém conhece
minha dor.

Meus olhos
treinaram alegria,
consegui esconder
meus sofrimentos.

Todos
me veem alegre,
divertem-se comigo,
não sabem
o que guardo.

Cada um
com sua dores
mudas...

Vem um dia,
vai outro,
assim vão seguindo
dias sem fim,
enquanto celebro,
silenciosamente,
alegres ausências.

Letras Ubatubenses

ESSE NÃO É O MEU POVO
Joban Antunes
Poeta caiçara
Quem a louco admira
Um governante genocida
Que tira o valor da vida
Incita a fazer loucura
Impede a nossa cura
E mente de cara dura
Que vai fazer tudo novo
Esse não é o meu povo

Aprova ataques insanos
Aos pilares da democracia
Sem se importar com os danos
E a malta o obedece
Com toda anomalia
E a impunidade cresce
E mentem com muito denodo
Esse não é o meu povo

15 novembro 2024

Letras Ubatubenses

NUVENS BRANCAS
João Paulo Naves Fernandes
novembro 12, 2024
Nuvens brancas
passeiam lentas,
quase descansam
no manto azul,
parecem fotos.

Convidam
à paciência,
à paz.

Não se evaporam
rapidamente
diante do Sol,
disfarçam suas fragilidades.

São esperança de durabilidade.

Cientes de si,
desdenham
as avenidas congestionadas,
as mentiras
nas redes sociais.

Passam isentas,
seguem
não sei para onde,
não é necessário acompanhar.

De alguma forma
desaparecem
sem que se sinta falta.

Sou uma pequena
nuvenzinha a observar
tudo embaixo.

Hoje aqui,
amanhã,
sabe-se lá...

Letras Ubatubenses

VESTÍGIO
João Paulo Naves Fernandes
Não passa...
o tempo segue seu curso.
Para muitos passa,
porque o passado
apaga tudo.
Se sorrio
enquanto choro,
o quê importa
para as pessoas
que desconhecem,
não veem,
não sentem.
Quando entardece,
sou jogado
contra mim,
afloram
grandes distâncias

09 novembro 2024

Letras Ubatubenses

ÀS VEZES
João Paulo Naves Fernandes
Às vezes
não vem palavras,
mas lágrimas...

Olhos perpassam
vulneráveis fisionomias,
penetram...
descobrem a verdade
além da postura superficial,
vão dentro...

Às vezes
fico confuso
sobre a quem respondo,
a quem falo.

Melhor deixar
oculto o oculto,
submeter-me
às trivialidades.

Melhor remexer escombros
escavar vidas soterradas,
não estão ali por acaso,
esperam socorro.

Às vezes
palavras
são melhores
que lágrimas,
curam ...

03 novembro 2024

Letras Ubatubenses

BEIRA MAR 
João Paulo Naves Fernandes
outubro 31, 2024
Água de coco,
ondas findando
o mar,
povo distraindo-se.
A natureza perdoa
as contradições,
com diversões.
O Brasil renitente
do meio ambiente,
meias teorias,
maresias.
A prova do prazer
arrefece o sofrer.
Aprecio
a identidade do Sol,
da brisa,
as doutrinas do vôlei,
o partido dos copos vazios,
nunca enchem,
atingem a vertigem
das marés baixas,
distantes das dores.

02 novembro 2024

Letras Ubatubenses

DIA DOS MORTOS
Joban Antunes
Poeta caiçara
Hoje é o dia de todos
Os que já partiram
Os que sonham com a partida
Os que angustiamente aguardam ela
Os mortos de fome
Os mortos de medo
Os mortos de frio
Os mortos de sono
Os que morrem de paixão 

01 novembro 2024

Letras Ubatubenses

ESTÁ CHOVENDO...
Joban Antunes
Poeta Caiçara
Está chovendo...
Depois de dias de sol e calor está chovendo...
E os pingos tamborilam no bojo da canoa emborcada fora do rancho
Como se fosse uma canção antiga que a gente só lembra as notas
A musicalidade
Mas esqueceu da letra.
Está chovendo como se o céu chorasse as nossas mágoas
Como se o chão pedisse beijos
Como se nos lavasse o coração
A superfície do mar encrespada pela chuva nos convida a pescar
Os gonguitos e os pampos que pulam na arrebentação para sentir a água doce da chuva
Quando menino corria no meio do capim-melado para sentir no corpo o joçá grudado cosquento
E depois ter desculpa para banhar-se no mar
Está chovendo...
Mesmo assim o dia não está triste porque cada coisa
Cada parte desse cenário se com o sol fica brilhante
Com a chuva fica límpido e tem a suavidade de uma alegria esquecida

Letras Ubatubenses

João Paulo Naves Fernandes lançará o POMAR DE LETRAS, junto com a 2ª edição do DITO PELO NÃO DITO, que publicou em 1988. O lançamento será em 14 de dezembro de 2024, sábado, das 18h às 20h30m, no Espaço Scortecci, à rua Dep. Lacerda Franco, 96, em Pinheiros, São Paulo -SP.

Letras Ubatubenses

CONFIDÊNCIA
(Véspera de Todos os Santos)
João Paulo Naves Fernandes
Cometi muitos erros
em minha vida.

Quem sabe,
mais erros
que acertos.

Cheguei ao fundo
do poço,
ninguém sabe disto.

Por isso compreendo
os erros dos outros,
de todo o tipo.

Por ter errado muito,
aprendi, no sofrimento,
a não colocar-me
acima das pessoas.

Se olho de cima
(quem sou eu
para estar no alto),
quem sabe
mais Deus tenha
de se esforçar
em sua misericórdia,
para comigo.

O mundo sempre esteve
em minha frente
como uma conquista
a ser feita.

Somente o tempo
celebrou o casamento
do mundo comigo,
e pudemos fazer as pazes,
regar jardins
descobrir terras novas,
cuidar dos feridos
de toda ordem.

Ferido a cuidar
de feridos.

Ainda luto...
contra o mundo
e contra mim.

Sinto-me sempre puxado
para um lado
que não é bom,
enquanto esforço-me
para seguir outro,
ditado pelo coração.

Assim,
posso ser encontrado
às vezes sisudo,
outras vezes alegre,
depende do momento,
por onde caminho.

Tantos erros,
que tento
fazer o bem,
compensação
de situações
que não
se compensam,
acumulam.

Está somatória desperta
um juízo adormecido
que pende,
ora para o perdão,
ora acusação... 

Assim vou...

22 agosto 2024

A CATEDRAL VOLPIANA


por
Arnaldo Chieus

Diálogos paralelos 
Colagens do repertório crítico

Para Luiz Ernesto Kawall

Uma linha poligonal
               Um arco verdadeiro
Na precisão dos vértices 
Entre um cafezinho 
E o indefectível 
                Cigarro de palha.
Na ereção de um símbolo 
                Absolutamente panteísta 
A religiosidade genérica 
Mergulhando no infinito
 Na paz profunda de luz e sombra. 
Um misto de formas tipográficas
 fixando-se nas paredes etéreas
                  Pintura pura 
                  Religiosidade cósmica. 
No claro,
com luz natural
do dia – 
Só assim enxergo o mundo: 
Meu mundo de luz natural.
                Um legítimo toscano 
                Um dia fui nascido
                Sou, ainda, serei sempre. 
Lucca, Modena, Veneza 
Catalizador definitivo das imagens icônicas 
Símbolo de um passado que não foi 
Hoje, mestre solitário 
A caminhar nas calçadas do Cambuci 
ao largo de suas ruas tortuosas 
na desolação de seus muros 
                  Entre a forma primitiva 
                  E a trama geométrica 
A busca da realidade 
          Transcendente. 
E na louca paulistânia 
a inspiração matutina 
à luz da primeira manhã 
saindo, ousadamente 
no seu rimado contraponto. 
                   Ao abandono, gradual 
                   Da pintura, ao natural
Longe, tão longe
 Dos amigos, antigos do Santa Helena.
 A maturidade a partir do rosto
 Sem nome 
Trabalhando suas construções imaginárias 
exilado de suas feições. 
São os amigos, novos,
que se fazem próximos
entre o que tinham em comum
 e nas diferenças que os uniam. 
desde o trinta e seis” 
um pintor a superar o tempo 
– “Vocês andam à cata de gênios, 
E não conhecem o Volpi, no Cambuci? 
Vamos lá”! 
Criador sempre 
Além de tendência, corrente, e temáticas 
Uma técnica instintiva 
Pintando antes de conhecer Cezanne
 e na afinidade próxima 
dos pré-renascentistas. 

Bruno Giorgi e Volpi, 
uma velha amizade!
                    E foi na amizade de suas leituras 
                    que nos desponta o camponês simples
                  na espontânea paciência de sua generosidade. 
E daí à magia da trama 
Na tela múltipla 
Traço ágil em magistral equilíbrio 
Maestria nas cores quentes e frias 
Autêntico, sempre. 
           Metáforas, analogias 
            Figuras, composições, construções. 
            Geometria limpa 
            Amplos planos e majestosos espaços. 
A forma 
            A linha 
                        A cor 
a compor e recompor poliedros
escavando a intuição
aproximando-se da genialidade!
 
E, em absoluta neutralidade,
 compor – repor – recompor
 na magistralmente religiosa composição
 Ao aguçado olhar franco de Maria Eugênia!
             E daí surgem as ogivas 
             Relação visual com o natural. 

A partir daí ergue-se a Catedral 
em áurea seta, fora do sonho, 
na melodiosa linha de sua polifonia. 
Muito além do céu tristonho 
Em busca do edifício perfeito
Tão inteligível ao olho que examina a partitura
Quanto ao ouvido (treinado)
Que absorve a trama polifônica. 


Na composição desse poema foram utilizados fragmentos das seguintes obras: 
A Catedral – poema de Alphonsus de Gumaraens 
Dois Estudos sobre Volpi – Olívio Tavares de Araújo 
Bruno Giorgi e Volpi, uma velha amizade – Luiz Ernesto Kawall

Este poema foi escrito em  15 de dezembro de 2023 em homenagem a Luiz Ernesto Machado Kawall
*11.06.1927
+13.08.2024
À sua memória, o Instituto Salerno-Chieus mantém, em Ubatuba, SP, o Núcleo de Documentação Luiz Ernesto Kawall  (Doc-LEK).



27 fevereiro 2024

FOLIA DE REIS

Texto
Arnaldo Chieus

Dentro do ciclo de festas da religiosidade expressas no catolicismo popular, a Folia de Reis é aquela que comemora o nascimento de Jesus Cristo. Essa festa faz parte de uma tradição popular originária na Europa que foi introduzida em Portugal por volta do século XIV e que sempre esteve associada à devoção religiosa do ciclo natalino comemorada com música folclórica e festas populares. O português que colonizou o Brasil veio com todo um precioso acervo acumulado de séculos de cultura, civilização e contatos com os mais diversos povos. Em sua bagagem, a saudade é uma das principais responsáveis pela sua energia, coragem e capacidade de permanecer nos horizontes distantes. [1]

“Em Portugal, a Folia de reis tinha como finalidade o divertimento do povo. Durante o seu transcorrer, os grupos batiam às portas das famílias, onde eram abertas as chamadas salgueiras, depósitos de mantimentos, pois nessa época, na Europa, é inverno. Ao chegar ao Brasil, a Folia de Reis adquiriu um sentido mais religioso do que profano.” [2] 

“Parece que a denominação “folia” apareceu, primeiro, em Portugal, para designar uma dança barulhenta, com acompanhamento de pandeiros. A mais velha referência portuguesa é de Gil Vicente. Em seu “Auto da Sibila Cassandra”, ele apresenta uma écloga de 1505, na qual os personagens cantam uma “folia”. E a primeira música com esse título, segundo o “Grove’s Dictionary” foi encontrada em Salinas (“De Música Libri semptem”, 1577), em duas versões”.[3]

O colonizador português trouxe para o Brasil diversas tradições associadas à religiosidade popular católica entre a quais aquelas ligadas ao ciclo de devoção natalino. 

Com o tempo essas práticas ganharam corpo e se espalharam por uma vasta extensão do território, ganhando adeptos e linguagens próprias em cada região. 

Em todo o Estado de São Paulo é muito grande a devoção aos Santos Reis, que se expressa na multiplicidade de um complexo de manifestações dentro do Ciclo de Natal, geralmente sincretizando alguns componentes do catolicismo oficial com outros folguedos do folclore local, tornando-os diferentes e peculiares em relação às diversas versões de Reisados de outros estados e regiões do país. 

Conforme Francisco Pereira da Silva, “a Folia de Reis (que não há que se confundir com a do Divino)... é uma das mais bonitas manifestações da alma popular do nosso folclore natalino. Trata-se, em linha geral, de um grupo religioso (no sentido extra-oficial) que, em visitação aos lares da sua comunidade contrafaz a peregrinação dos Reis Magos em demanda do menino-Deus recém-nascido na manjedoura de Belém. De 24 para 25 de Dezembro, no instante neutro da meia-noite, entra a Folia em função. Termina a 6 de Janeiro, Dia de Reis. Mas, excepcionalmente, prolonga-se até Nossa Senhora das Candeias. Isto é, 2 de Fevereiro, que tem a denominação poética de “Candelárias”. O povo é um amor.” 

Entre os caiçaras de Ubatuba “a devoção ao Santo Reis se comemora com cantorias e peregrinações durante todo o ciclo de Natal, que vai desde o início de dezembro até fins de janeiro e possibilita encontros de músicos dos diferentes bairros. Como acontece com a devoção ao Divino, o Santo Reis é considerado como entidade única. Embora saiba da existência dos três reis magos que visitaram o presépio, o caiçara (e mesmo o caipira do interior) a eles não se refere, e a devoção aos reis não está ligada a imagens. O devoto antes os transforma num único santo, sem imagem identificadora, e proclama:”

- “o santo reis é um santo muito milagroso.” 
(Kilza Setti, p. 258/259) 

Esse caráter milagroso das folias está associado ao seu período de peregrinação, organizada geralmente em conseqüência de uma promessa, seja esta feita pelo seu mestre ou por um de seus componentes, que têm entre si alguma relação de parentesco ou amizade. E pelos laços da promessa os componentes da folia assumem entre si o livre compromisso de empreenderem a jornada dos Reis por um período de sete anos. Para que um folião de Reis se considere desincumbido de suas funções com a folia é necessário que ele cumpra a jornada completa dos sete anos de Folia, o que poderá ser feita de forma contínua ou não. Depois de cumpridos os sete anos os foliões estão desobrigados com a folia podendo passar a sair à vontade, neste ou naquele ano, a menos que façam novas promessas. (Folias de Reis, Zaide Maciel de Castro e Araci do Prado Couto – Folias de Reis – Revista do Arquivo Municipal – CLXV – 1959). 

Quanto às promessas, essas quase sempre são feitas no intuito de obter-se o restabelecimento da saúde do próprio promesseiro ou de alguém efetivamente a ele ligado, geralmente um parente próximo. A promessa também tem a duração de sete anos, o mesmo tempo da jornada ou peregrinação da Folia e sua renovação, quando ocorrer, se dá em múltiplos desse número. 

Como ocorre com a Folia do Divino, os agrupamentos de foliões e devotos são designados por Folia de Reis. Seja por devoção, gosto ou função social, peregrinam de casa em casa no período compreendido entre 24 de dezembro (véspera de Natal) até 6 de janeiro (Dia de Reis) com cantadores e instrumentistas entoando versos e cantorias com fundo religioso cumprindo sempre uma ritualística pré-estabelecida. Os versos têm início com o tema da Profecia do nascimento do menino Jesus até a visita dos Reis Magos.

Conforme Alceu Maynard Araujo, “a folia se reveste de um caráter sagrado, são os representantes dos reis magos visitando os devotos, havendo um ritual de visitas e reverências nas casas onde há presépios. Na cantoria os versos giram em torno deste temas: anunciação, nascimento, estrela-guia, Reis Magos, adoração, ofertório, agradecimento e despedida”.[4]

Os figurantes da folia são chamados, em conjunto, foliões, mas, havendo necessidade de especificar, dividem-se em foliões e palhaços. Os primeiros, uniformizados, são cantores e músicos e, durante a jornada, marcham a passo descansado em formação militar, acompanhando a bandeira. Os segundos são principalmente dançarinos e cômicos, ficam em segundo plano em relação aos foliões, sofrem uma série de restrições que serão estudadas a seu tempo, mas vestem-se do modo que desejam e cantam chulas à sua vontade, quando chega a sua vez. 

Se para alguns membros ou acompanhantes da Folia de Reis a sua devoção está associada ao cumprimento de uma promessa, para outros ela pode significar um devotamento essencial ou, em outros casos, simples divertimento. Evidentemente que todos os seguidores, sejam os contínuos  ou esporádicos, sempre cumprem uma determinada ritualística que é fixada pela própria Folia. Importante ressaltar que a Folia, por ser dinâmica na sua peregrinação, nem sempre permite ao devoto ou seguidor estar presente em todo seu trajeto. Por isso é comum nas Folias que percorrem nosso extenso e recortado litoral ter um grupo de foliões fixos, geralmente o versista principal e alguns músicos. 

O versista é na maioria das vezes o mais experiente dos componentes da folia quer pelo seu caráter gregário para arregimentar seguidores quer pela sua capacidade de memorizar e improvisar versos. 

“No litoral norte de São Paulo, “Reis” e mais raramente “Folia de Reis”, e também “Reisado” o grupo de instrumentistas e cantadores que, durante a noite, costuma entoar, de porta em porta, versos relativos à visita dos Reis magos ao Menino Jesus e, inclusive, à Paixão de Cristo, em busca de ofertas que são usufruídas pelos próprios e as quais podem se resumir num simples café.” 

Muito embora a Folia de Reis tenha personagens próprios, composto por mestre e contramestre, os três reis magos, palhaços e foliões, no caso das Folias que percorrem Ubatuba não temos a ocorrência dos palhaços uma vez que a bandeira de Reis, entre os caiçaras, tem espírito basicamente devocional. 

Como toda tradição folclórica, a Folia de Reis vive e sobrevive em Ubatuba como sempre viveu, ou seja, em constante e dinâmica ruptura com o rito tradicional. Tanto o toque quanto o ritmo, a composição dos versos e seu canto, e a própria composição de seus quadros apresenta uma diferença marcante, diferenciando-a daquela que se apresenta no interior do estado. 

Há que se acrescer a isso o fato de que a cidade de Ubatuba, nos dias de hoje, possui uma dinâmica completamente diferenciada, alterada pelo grande fluxo de migrantes, principalmente daqueles egressos do norte de Minas Gerais e da região nordeste. E o folclore desta região do litoral caiçara paulista, que é tradição e também e principalmente assimilação, sofre com isso um processo de constante ruptura. Essas rupturas, muito embora tênues posto que imperceptíveis ao neófito, vão se acrescentando silenciosa e naturalmente aos entrechos da linha devocional caiçara. Porém alguns pontos da Folia ainda permanece fiel ao formato tradicional. 

Segundo Odaci Araújo, filho e neto de cantadores de Reis, em época não tão recente (1950) ocorreu uma divisão dos Reis em dois grupos: um deles, mais chegado às festas, que terminava sua cantoria em baile; outro, estritamente religioso, encerava no Reis uma verdadeira pregação. Esses fatores dizem respeito mais exclusivamente ao aspecto social que envolvia os respectivos grupos. 

E muitas são as histórias que ligam o caiçara com a devoção e às jornadas dos Reis, a que alguns dão o nome de voto, significando o convite a amigos e companheiros para cantarem juntos a Folia dos Santos Reis. 

A esse respeito Catarina de Oliveira Prado nos contou de viva voz que ao tempo de seu pai, em sua casa, no Perequê-Açú, nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro realizava-se uma devoção com os Santos Reis devido a uma pescaria que ele foi fazer e à qual foi estipulada uma promessa aos Santos Reis. Segundo a tal promessa, se tudo corresse bem ele prestaria homenagem cantando nas festas de reis. À época da promessa, seu pai, que era funcionário público do grupo escolar, então a única escola de Ubatuba, teria sido convidado por alguns companheiros para cantar o Reis, mas, ao invés disso, ele, que gostava muito de caçar e pescar, ao invés de atender ao convite dos amigos, resolveu “botar tróia” respondendo aos amigos: “vou matar alguns peixes para vender e sustentar a família”. Ocorre na pescaria ele sofreu um acidente sendo ferido pelo esporão caudal de uma raia, o qual produziu profundo e doloroso ferimento em sua perna. Socorrido, foi trazido para a cidade onde foi tratado pelo Luiz do Bico o qual foi, “no último quartel da sua vida o coronel Luiz Domiciano da Conceição, prestigioso chefe político do município, merecendo, por seus méritos a perpetuação do nome numa das ruas da cidade” [5]

Pois bem, já tratado, arrependeu-se e prometeu, se ficasse bom, no ano seguinte iria fazer o voto e a devoção aos Santos Reis todo dia 6 de janeiro. Daí por diante, de 1º de dezembro a 6 de janeiro sua casa era toda festa, com aquele povaréu todo, baile, instrumentos de corda, cavaquinho, pandeiro, rabeca... 

Já para Priscila Siqueira, jornalista radicada em São Sebastião, “o Reisado Caiçara é uma espécie de serenata, cantada sempre à noite, e seus participantes não saem caracterizados. No Reisado do Litoral não se pode acender as luzes ou abrir as portas das casas enquanto o grupo de reis está cantando. Nesta manifestação popular, a rabeca, um instrumento muito importante, é normalmente tocada pelo líder do grupo. Como na Folia de Reis, os participantes do grupo de Reisado consideram a música e seus versos verdadeira oração.[6] 

Ocorre que os grupos são montados por volta da época da data católica do Advento formando-se a partir de então uma peregrinação passando alegremente pelas casas levando a “cantoria de reis”. 

De “Os Caiçaras Contam” [7] 
recolhemos os seguintes depoimentos:

“Nasceu Jesus, nasceu Nosso Senhor. 
Nasceu Jesus, nessa noite de amor. 
Nasceu Nosso Senhor, nasceu Jesus. 
O mundo inteiro todo cercado de luz.” 
Versos da Folia de Reis, cantados por Orlando Antonio de Oliveira, 77 anos. 

O folclorista caiçara José Ronaldo recolheu do grupo da praia do Sapé a letra abaixo transcrita: 
1. Ó de casa cavalheiro/ Diga se eu posso entrar/ Se houver algum agravo/ Aí diga que eu quero voltar. 
2. Viemos cantar o rei/ Hoje mesmo que é devido/ Viemos trazer notícias/ Ai de Jesus nascido. 
3. Os três reis encaminharam/ Pelas partes do Oriente/ Chegam na corte de Herodes/ Ai perguntaram de repente. 
4. Onde era nascido/ O verdadeiro Messias/ Rei Herodes respondeu/ Ai eu vou ver na profecia. 
5. Lá na profecia reza/ Que era nascido em Belém/ Ides lá e voltais aqui/ A que eu quero ver também. 
6. Herodes que nem malvado/ Que nem perverso, maligno/ Foi ensinar aos três reis/ Ao as avessas do caminho. 
7. Viagem que era de um ano/ Fizeram em quinze dias/ Porque foram bem guiados/ Ai pelo infante rei-Messias. 
8. Atrás daquela cabana/ Uma estrela aparecia/ Era neto de Sant'Ana/ Ai filho da Virgem Maria. 
9. São José quando se viu/ Entre nobres companhias/ De prazer e de alegria/ Ai não sabia o que fazia. 10.Vinte e cinco de dezembro/ De meia noite pro dia/ Nasceu o menino-Deus/ Ai filho da Virgem Maria. 11.Eu não vos peço ofertas/ Que são coisas de valia/ luz acesa e porta aberta/ Ai e afeição de alegria. 
12.Ó senhor que estais dormindo/ Nesse seu colchão dourado/ Vinde nos abrir a porta/ Ai que aqui estão vossos criados.[8]

Os temas relativos à profecia do nascimento do Menino Jesus sofre variações em face diversos fatores sejam eles de ordem geográfico ou aqueles relativos à capacidade de memorização e à de improvisação do verista que associa variações ao tema central, essencialmente religioso, outros motivos, sejam líricos ou amorosos

 OUTRAS FORMULAÇÕES

Uma tradição centenária da idade do Casarão do Porto 
Folheto distribuído pela Prefeitura Municipal de Ubatuba por ocasião da Folia de Reis/década de 80 

Diz Odaci de Araújo, filho e neto de cantadores de Reis, que foi Baltazar da Cunha Forte quem trouxe para Ubatuba, aproximadamente em 1830, mão de obra mineira para construir sua casa (hoje tombada pelo Patrimônio Histórico e chamada de Sobradão ou Casarão do Porto). Com esse pessoal reviveu-se o costume de cantar ao som da viola, depois do trabalho, várias cantigas e entre elas o Reis (dançava-se também a folha verde, o xiba e outras danças folclóricas). 

Unindo-se com gente da Praia da Fortaleza (ao sul), do Poruba e da Picinguaba (ao norte) e até mesmo de Paraty, vindos a Ubatuba nos tempos áureos do café em busca de trabalho, iniciaram um canto aos Reis baseado no mineiro. Com algumas alterações, ele é entoado até hoje na região.

Mais recentemente (1950) é a divisão dos Reis em dois grupos: um mais chegado às festas, que terminavam a cantoria em baile; outro estritamente religioso, que encarava o Reis como uma pregação. 
Os instrumentos musicais utilizados pelos dois grupos eram quase os mesmos, sempre feitos por aqui e Odaci cita o nome de Benedito Carros como fazedor de viola e rabeca (nome dado ao violino), em nogueira. Para acompanhar o Reis entoado no Centro (religioso), tocava-se viola, rabeca, pandeiro e reco-reco de bambu. O Reis da chamada Rua Nova, mais festeiro, era acompanhado por viola, rabeca, pandeiro, reco- reco e cavaquinho. 
Hoje se usa violão, cavaquinho, clarinete, pandeiro e bumbo. E continua a tradição do “tipe” ou “tripé”, cantor que faz uma voz fina junto aos instrumentos, nas estrofes intermediárias, sem letra.
Como é tradição em todo lugar onde se cantam as Folias (de Reis ou do Divino), os cantadores são recebidos nas casas que visitam com comida e bebida, de preferência não alcoólica. Cantar aos Reis é obrigação que dura sete anos, geralmente iniciada para se alcançar uma graça. 

DUAS LETRAS PARA O MESMO REIS

Há duas letras de Canto de Reis. Uma, mais antiga, não tem autor conhecido e ela tem passado através das gerações. Ela diz o seguinte:
Ó de casa, ó nobre gente
Diga que vos ouvireis 
Uma cantiga excelente 
Que se canta pelos Reis. 

Padeceu nosso Jesus 
Foi arrastado                     Bis
E pregado na cruz 

Os três Reis quando vieram 
Lá da parte do Oriente 
Chegaram à porta de Herodes 
Perguntaram de repente. 

Padeceu nosso Jesus...
 
Aonde era nascido 
O verdadeiro Messias 
Rei Herodes respondeu 
Que ia ver nas profecias. 

Padeceu nosso Jesus... 

Que nas profecias reza 
Era nascido em Belém 
Se fores lá, voltai aqui 
Que eu quero ir ver também. 

Padeceu nosso Jesus...
 
Os três Reis lá do Oriente 
Se puseram em jornada 
Foram dar com Cristo em Roma 
Às horas da madrugada. 

Padeceu nosso Jesus... 

Detrás daquela cabana 
Uma estrela aparecia 
Era o neto de Santana 
Filho da Virgem Maria
Padeceu nosso Jesus... 

Jesus Cristo foi nascido 
No presépio de Belém 
Para todo o sempre, amém. 

FOLIA DE CANTO AOS REIS 

Uma segunda letra da Folia de Reis usa a mesma base da primeira, mas recebeu versos novos há cerca de 30 anos, feitos por Manoel Barbosa, cantador de Ubatuba que passou para seu filho a preocupação de manter vivo no município o costume; o rapaz, conhecido por Mané Babirro, saiu com a Folia até 1983, quando faleceu. Há um novo grupo se apresentando em público, com a intenção de preservar as tradições folclóricas locais.

Ó de casa. Ó nobre gente 
Acordai e ouvireis 
Estes cânticos excelentes 
Que se canta pelos Reis 

Aleluia, Jesus nasceu 
O mundo inteiro 
Da luz se encheu 
Adoramos o Salvador 
Vem nos traze 
Paz e amor. 

Os três Reis quando vieram 
Lá das bandas do horizonte 
Chegaram à porta de Herodes 
Perguntaram de repente 

Aleluia, Jesus nasceu...

Aonde era nascido 
O verdadeiro Messias 
Rei Herodes respondeu 
Que ia ver nas profecias 

Aleluia, Jesus nasceu... 

Nas profecias constava 
Que nascera em Belém 
Ide lá, voltai aqui 
Que eu quero 
Ir ver também. 

Aleluia, Jesus nasceu... 

Em Belém cantaram os galos 
Jesus Cristo já nasceu
 Os anjos cantam hosanas 
E o céu resplandeceu.

 Aleluia, Jesus nasceu. 

O mundo inteiro 
De luz se encheu
Adoramos o Salvador
Vem nos trazer Paz e amor...

Notas:
1 Dante de Laytano – Origens do Folclore Brasileiro – Cadernos de Folclore nº 7, Rio de Janeiro, 1968. 
2 Thereza Regina de Camargo Maia – Paraty religião e folclore 
3 Thereza Regina de Camargo Maia – idem 
4 Folclore Nacional Festas Bailados Mitos e Lendas. Alceu Maynard Araujo. Edições Melhoramentos, 1964.
5 Oliveira, Washington de. A Farmácia do Filhinho. Ubatuba. 1989.
6 Priscila Siqueira, “Crianças comandam a Folia de Reis”, in O Estado de São Paulo, 09/JAN/1982. 
7 Marcos Frenette, “Os Caiçaras Contam”, Publisher /Brasil, /São Paulo, 2000.
8 Cantiga dos Santos Reis - Crônica do Zé - Jornal “A Cidade”, 22/23 de março de 2014 

01 fevereiro 2024

São José de Anchieta

Fragmentos de sua vida em Ubatuba, a pacificação dos índios e o poema de exaltação à Virgem Maria

Por: Arnaldo Chieus



1. Apresentação

Este trabalho do Colégio Dominique (Ubatuba, SP) e do Instituto Salerno-Chieus é mais uma das atividades da Biblioteca Hans Staden, criada em agosto de 1989. 

Esta apostila é um resumo elaborado a partir de notas de leitura que se constituíram numa comunicação oral, em abril de 2023, destinada a professores da rede municipal de ensino de Ubatuba (SP), durante atividade pedagógica de instrução continuada patrocinada pela agência local do banco SICREDI. Versa sobre aspectos da vida de São José de Anchieta, especialmente do tempo em que viveu na orla de Ubatuba, em 1563. Neste período se discutia o acordo de paz entre dois grupos: o primeiro, formado por nativos tupinambás e demais tribos da Confederação dos Tamoios, aliados dos franceses estabelecidos na baía da Guanabara; o segundo, os tupiniquins, aliados dos colonizadores portugueses. Do trabalho do padre José de Anchieta, em parceria com o padre Manuel da Nóbrega, resultou o fim das contendas, graças ao estabelecimento do primeiro tratado de paz das Américas, denominado Paz de Iperoig, em 14 de setembro de 1563.

2. São José de Anchieta

Padre José de Anchieta, canonizado como São José de Anchieta pela Igreja Católica Apostólica Romana, viveu em Ubatuba, na aldeia Iperoig, no ano de 1563. Naquele ano, juntamente com o padre Manuel da Nóbrega, intermediou a pacificação dos índios locais, os tupinambás. Os canibais nativos, associados a franceses que ocupavam o Rio de Janeiro, com o nome de França Antártica, rivalizavam com os colonizadores portugueses. Os tupinambás dominavam o litoral entre Bertioga e Cabo Frio. 

Em Ubatuba, aonde chegaram procedentes de Itanhaém e Peruíbe, logo após o período de quaresma do calendário religioso, os dois sacerdotes prepararam um protocolo para por fim às hostilidades entre portugueses e tupinambás e seus aliados franceses. 

Para chegarem a Ubatuba, Anchieta e Nóbrega, foram transportados, entre os dias 18 de abril e 06 de maio de 1563, por embarcações do amigo José Adorno. A expedição marítima foi capitaneada pelo próprio Adorno, para que os padres tivessem a oportunidade de parlamentar com os chefes tupinambás e negociar a paz definitiva com os portugueses. 

3. Tratado de paz 

O Armistício de Iperoig ou Paz de Iperoig foi o primeiro tratado de paz nas Américas e foi ratificado em 14 de setembro de 1563. Para que as conversações se frutificassem, José de Anchieta se dispôs a ficar em Ubatuba, como refém dos indígenas, enquanto Manuel da Nóbrega e um filho do cacique Cunhambebe, líder regional dos tupinambás, seguiam até São Vicente, a fim de definirem as negociações de paz entre os nativos da Confederação dos Tamoios e os portugueses. 

Enquanto esteve em Ubatuba, escreveu, nas areias da praia a sua principal obra, o Poema à Virgem. O título original era “De Beata Virgine Del Matre Maria”. São 5.786 versos em latim. Segundo a tradição, ele rascunhou a obra nas areias de Ubatuba e memorizou os versos para, mais adiante, em São Vicente, passar para o papel. 

4. A Confederação

A Confederação dos Tamoios foi um agregado de forças. A coalizão foi definida na localidade de Mangaratiba, no litoral fluminense, reunindo os chefes Aimberê, da aldeia de Ubatuba (Uwatiby)*, Pindobuçu, de Iperoig, Koaquira e Cunhambebe, de Ariró, e Guayxará, de Taquarussu-tyba. 

Sob a liderança de Cunhambebe e apoio de outras nações indígenas, como os goitacazes, carajás e aimorés, os tupinambás estabeleceram uma aliança contra os tupiniquins e portugueses. Para insuflar o levante contra os colonizadores, os franceses, interessados em se apossarem da baía da Guanabara e imediações, forneceram armas para a confederação. No período dos embates, Cunhambebe veio a falecer por infecção e foi sucedido na liderança por Aimberê. Entre suas ações, houve a tentativa, em vão, de cooptar os tupiniquins para que estes abandonassem os portugueses e se aliassem à Confederação dos Tamoios. 

As etnias conflagradas situavam-se ao longo do Vale do Paraíba, do litoral e da baía da Guanabara. A guerra foi travada, de um lado, pelas tribos tupinambás, reunidas sob o nome de Tamoios, e aliadas aos franceses que, estabelecidos na colônia da França Antártica, a partir de 1555, disputavam a região do Rio de Janeiro com Portugal; de outro lado, pelos portugueses aliados aos tupiniquins, que tentavam estabelecer seu empreendimento colonial e subjugar a revolta. 

A luta só terminou com a chegada de reforços portugueses, com o capitão Estácio de Sá, o que deu início à expulsão dos franceses e a dizimação de seus aliados tamoios. A guerra é relatada, em parte, nos escritos do mercenário alemão Hans Staden, que foi prisioneiro dos tupinambás na região de Ubatuba, por nove meses, tendo acompanhado o chefe Cunhambebe em expedição bélica contra os portugueses e tupiniquins na região de Bertioga. 

Com a interferência dos jesuítas Nóbrega e Anchieta, fundadores de São Paulo, uma trégua foi selada no episódio conhecido como Armistício de Iperoig, no qual os portugueses se comprometeram a libertar todos os indígenas escravizados. 

5. José de Anchieta 

O padre José de Anchieta, jesuíta da Companhia de Jesus, nasceu em 19 de março de 1534, em San Cristóbal de la Laguna, Ilha de Tenerife no arquipélago das Canárias, Espanha . Faleceu, no Brasil, em 9 de junho de 1597, na localidade Reitiba ou Iriritiba, hoje município de Anchieta, estado do Espírito Santo. Seus restos mortais jazem no Palácio Anchieta, em Vitória (ES). Foi beatificado em 22 de junho de 1980 pelo papa João Paulo II e canonizado em 3 de abril de 2014, pelo papa Francisco.


Anchieta, com 19 anos de idade, chegou ao Brasil em 1553, a bordo da caravela que também trazia de Portugal o segundo governador geral do Brasil, Duarte da Costa, recém-nomeado pelo rei D. João III. Alguns meses depois de embarcar na Bahia, Anchieta já era um dos mais requisitados evangelizadores jesuítas. Recebeu, por exemplo, a incumbência de ajudar a fundar um colégio da Companhia de Jesus no planalto de Piratininga. Assim o fez, em 25 de janeiro de 1554, juntamente com o padre Manuel da Nóbrega, o que deu origem à cidade de São Paulo. 

Em 2023, vários templos reverenciam seu nome, como o da Catedral de San Cristóbal de La Laguna, nas Ilhas Canárias; e, no Brasil, do Santuário Nacional de São José de Anchieta, na cidade que leva o seu nome. A festa litúrgica em sua honra é celebrada em 9 de junho. Foi designado Copadroeiro do Brasil. As principais homenagens ao santo que viveu uma parte de sua vida em Ubatuba são: Rodovia Anchieta, em São Paulo; Monumento ao Padre José de Anchieta em Tenerife, Espanha; Discursos pronunciados em sessão solene no Congresso Nacional, em 24 de junho de 1980; Estabelecimento do dia 9 de junho, como Dia de São José Anchieta; Denominação de Palácio Anchieta à sede do governo do Espírito Santo; Estátua do Padre José de Anchieta, em São Vicente (SP). Em Ubatuba (SP), um monumento na praia Iperoig - com uma estátua de Anchieta, rodeada por estátuas de índios - exalta a celebração do tratado Paz de Iperoig. Além disso, o dia 14 de setembro é feriado no calendário oficial da cidade, em reverência à proclamação do armistício em 14 de setembro de 1563. Ainda em Ubatuba, um acidente geográfico tem o seu nome: Ilha Anchieta.

José de Anchieta ingressou na missão eclesiástica em Portugal. Era gramático, dramaturgo e poeta. No Brasil, viveu em São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Criou a primeira cartilha em língua tupi. Escrita em apenas 6 meses, descreveu e sistematizou no papel uma língua nova, até então apenas oral, baseando-se no modelo estrutural do latim. Com o nome “Artes de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil”, foi impressa em 1595, em Coimbra, Portugal. A gramática de Anchieta foi a segunda gramática de uma língua indígena. A primeira tinha sido a Arte de la Língua Mexicana y Castellana, do frei Alonso de Molina, publicada no México em 1571. 

Graças ao seu magnífico trabalho, o padre Anchieta realizou um dos princípios básicos da Companhia da Jesus: o de que todos os missionários deveriam aprender a língua da terra onde exerciam seu ministério, para empregá-la em vez de seu próprio idioma. De sua gramática foram lançadas 7 edições. Da primeira edição sabe-se de três exemplares: Um na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; outro na Biblioteca Vittorio Emanuele, Roma; e o terceiro no Arquivo da Companhia de Jesus, Roma. A partir da gramática de Anchieta iniciou-se o estudo do tupi, em Salvador, no colégio jesuíta. Aprender tupi valia para todos os que exerciam os serviços catequéticos missionários.

Anchieta escreveu poesias, cartas e autos. O conteúdo dos seus textos se referia aos conceitos morais, espirituais e pedagógicos. Inicialmente redigiu em castelhano e em latim. Depois, traduziu para o idioma português e para o tupi. 

6. Catequese 

Padre José de Anchieta dedicava-se a catequizar os indígenas, isto é, apresentar-lhes os preceitos cristãos. Tinha, ainda, especial atenção em se comunicar com os nativos. A preocupação com a língua local girava em torno da dificuldade que seria europeizar o novo mundo conquistado, sem se fazer compreender por seus moradores. Em São Vicente, entre os tupiniquins, aprendeu a língua tupi. Em 1595, escreveu “Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, a primeira gramática do Tupi - Guarani. 

Em menos de meio século os jesuítas ganharam a confiança dos nativos e transmitiram os preceitos e comportamentos cristãos. Tornaram-se, assim, a mais potente organização a serviço da Igreja Católica, nas palavras do estudioso em comunicação Luiz Beltrão, no livro “Folkcomunicação”. O êxito se deveu em grande parte ao esforço descomunal do padre José de Anchieta que, por décadas, observou as festas e rituais dos tupinambás e de outras tribos com os olhos de um antropólogo. Atuando junto aos indígenas da costa brasileira na região litorânea compreendida entre a Bahia e São Paulo os  jesuitas passaram a ter domínio de sua língua geral e suas variante regionais. E esse conhecimento foi necessário para por em prática sua pedagogia missionária. Não podemos nos distanciar da formação missionária católica de Anchieta, forjada nas hostes  da Companhia de Jesus no espírito cruzado tal um sooldado medieval redivivo, onde o sagrado era o seu referencial máximo.

“A noção de cultura histórica, dinâmica e flexível permite perceber nas inúmeras contradições presentes nos textos e discursos dos inacianos a imensa complexidade das relações de contato. Nessa perspectiva, os índios tornaram-se sujeitos ativos na colonização, respondendo a ela de formas variadas, buscando também, nas relações com os europeus, vantagens e benefícios de acordo com as culturas e organizações sociais, que igualmente se alteram no decorrer do processo histórico. É o que se pode depreender da vasta e diversificada obra de Anchieta, que inclui a Gramática da Língua Tupi, várias informações sobre a terra, seus habitantes e o desenvolvimento da colonização, cartas, poemas e os famosos autos” (Almeida, 1998). 

A atuação de Anchieta como catequista foi numa fase inicial de sua vivência no Brasil Colonial. Logo em seguida dedicou-se, principalmente, à instrução dos filhos dos colonos portugueses. Fez isto paralelamente aos estudos da língua e dos costumes dos gentios. Desta forma produziu uma vasta obra evangelizadora. 

7. Anchieta em “Terra Tamoia”

Em referência a José de Anchieta, a escritora Idalina Graça, nascida em Ilhabela e radicada em Ubatuba, no livro “Terra Tamoia”, às páginas 55 e 56, estampa:

O velho relógio da Matriz, na sua imperturbável marcha através das coisas e do tempo, marca meio dia. A praia, em quietude, vive nesse momento uma de suas horas mais belas, principalmente para os que compreendem a poesia do silêncio. Minha alma enxerga, nessa mansidão das coisas paradas, uma possibilidade de fuga para a região dos sonhos. Vai longe meu pensamento, como um corcel alado, vivendo outra personalidade. Volto ao passado, às mesmas praias aonde divago sentindo as carícias das alvas espumas eu vêm tocar meus pés descalços. Longe do mar, na verde e prata, sob o céu vivo e azul, emoldurado por um continente de sonhos, revela a inigualável artista, fonte prodigiosa de poesia, a Natureza. Na areia, matizada de conchas, o sol brinca, dourando-as. Meu espírito retrocede aos séculos que se foram. Impulsionada pela brisa do norte, balouça mansamente nas águas de Iperoig uma galera portuguesa. Um luso de compleição robusta, feições ríspidas, pele marcada pelo sol e pelos ventos dos trópicos, olha a beleza daquele quadro e seu pensamento vai longe.

– “Terra dos meus pais, jamais voltarei a ti! Não espero ter a ventura de voltar a estreitar nos braços os entes a quem amo e que lá ficaram! Nunca mais o meu olhar cruzará com o da mulher que tanto amei, nem verei o rouxinol em meu velho Portugal construir seu ninho junto à casa de meus pais!”. Assim meditava o português, levado pela saudade do povo distante, olhando as vagas esfrangalhando-se em cascaras de espumas reluzentes, nos rochedos de Iperoig. Mão amiga pousou-lhe sobre os ombros. Ouviu-se a voz meiga e suave de seu companheiro de exílio a murmurar-lhe aos ouvidos, diante daquele cenário agreste da terra brasileira, a mensagem de fé: – “Seremos fortes como as rochas que nos desafiam e nada nos poderá deter no áspero caminho! Nossa cruz não será demasiado pesada! O momento que passamos é digno de ser vivido! Tens, à tua frente, um futuro de glórias, terras a conquistar, gentios a dominar, e um dever a cumprir perante Deus e a Pátria”

Com a serenidade dos iluminados, assim falou o meigo filho de Tenerife ao moço português, levando esperança outra vez ao espírito vacilante do ousado navegante. E o luso, unindo o próprio pensamento ao de Anchieta, agradeceu a Deus o conforto com que o revigorava naquele instante. No dia seguinte, quando o sol veio, outra vez, iluminar a terra escolhida para abrigar o Santo Missionário, ali já não encontrou aquele homem dominado pelo desalento, que tivera um instante de desânimo diante da imensa tarefa que lhe coubera. Para o lusitano, em busca de outras paragens, misteriosas e desconhecidas, levando em sua galera um arsenal de esperanças, sonhos e ilusões, tendo por bússola aquela extraordinária fé, que Anchieta lhe transmitira nas alvas areias de Iperoig.

O jesuíta solitário une sua voz ao marulho das vagas, sem temer perigos, esperando sempre a cruel flecha dos Tamoios. Tomba os joelhos na areia úmida e ergue ao céu uma prece por toda a humanidade. Outrora, assim vibrou a fé de Anchieta.

Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Maria Regina Celeste de. Anchieta e os índios de Iperoig: reflexões sobre suas relações a partir da noção de cultura histórica. Revista de Ciências Sociais, v.29 N.1/2, 1998. 
ANCHIETA, Padre José. Cartas Inéditas. Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, edição comemorativa do 4º centenário. São Paulo, 1900. 
CONFEDERAÇÃO dos Tamoios. In: www.pt.wikipedia.org, acessada em Nov de 2023. GRAÇA, Idalina. Terra Tamoia. Editora Martins, São Paulo, 1967. 
STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Marburgo, Alemanha: 1557. Republicação da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: 1988. 
VIEIRA Celso. Anchieta. Cia. Ed. Nacional, 3ª edição, São Paulo, 1949

SUMÁRIO

1.   Apresentação
2.   São José de Anchieta
3.   Tratado de Paz 
4.   A Confederação 
5.   José de Anchieta
6.   Catequese 
7.   Anchieta em “Terra Tamoia”  

13 janeiro 2024

A Catequese Indianista de José de Anchieta

por Arnaldo Chieus

O retrato que fazemos de Anchieta ainda hoje é o mesmo que temos fixados desde a infância, traçado nas gravuras de nossos livros escolares que ajudavam a compor nossa imaginação figurativa. Aquele mesmo jovem padre de batina com os pés descalços sobre as areias de Iperoig traçando os versos latinos do longo poema dedicado à Virgem Maria, do qual era devoto desde o início de sua formação jesuítica.

Anchieta era espanhol insular, nascido na ilha de Tenerife, arquipélago das Ilhas Canárias, em 19 de março de 1534. Aos 14 anos foi com sua família para Coimbra, em Portugal e três anos mais tarde ingressou na Companhia de Jesus para dar início à sua formação sacerdotal.

Aos 19 anos e ainda noviço foi convocado pelo padre Manoel da Nóbrega para compor juntamente com outros membros da Companhia de Jesus a segunda grande expedição portuguesa ao Brasil Colônia, acompanhando o segundo governador geral do Brasil, Duarte da Costa, em 1553.

Seu trabalho evangelizador e catequético começou logo em seguida à sua chegada, juntando-se a Manoel da Nóbrega na missão de pacificação dos Tamoios em Iperoig, onde ficou por aproximadamente sete meses.

A respeito da passagem de ambos por Ubatuba, Idalina Graça, no seu livro “Bom dia Ubatuba”, assim se refere com sua peculiar poética em prosa:

“Debruçado nas verdes colinas do Itaguá, namorando eternamente o mar, o morro do Jundiaquara se destaca grandioso e imponente, guardando em si estranhos mistérios do passado. Foi neste local que, em idos tempos, Nóbrega e Anchieta, unidos em missão de catequização entre os nativos Tamoios descansavam de árduas lutas e uniam suas vozes com as vibrações do espaço, rogando ao Pai Todo Poderoso por aqueles que estavam por vir.” [1] 

E Paulo Camilher Florençano, exímio desenhista e historiador valeparaibano, reportando-se ao mesmo episódio histórico:

Era o ano de 1563. Dois religiosos da ordem dos jesuítas, o mais velho, o padre Manoel da Nóbrega, o outro, o ainda noviço José de Anchieta, este, na força dos seus sadios 29 anos. Eles haviam chegado a Iperoig sozinhos, desarmados e desprotegidos. Iam tentar estabelecer tratado de paz com aqueles valentes e perigosos selvagens, que, já por várias vezes, haviam posto em perigo o trabalho de colonização encetado pelos portugueses, não só na faixa litorânea, como até no planalto. As conversações iniciaram-se promissoramente, e, dois meses depois, o padre Nóbrega retornou a São Paulo levando as condições de paz. Deixava, no entanto, servindo como refém – aquele jovem religioso, livre, sozinho e pleno de mocidade.

E, aí, então, o extraordinário: – nada aconteceu!

Para livrar-se de tentações, a fim de que os seus votos de castidade não viessem a ser quebrados, Anchieta cansava seu corpo com longas caminhadas, e o espírito compondo nas areias da praia de Iperoig, e, latim perfeito, lindos e fervorosos versos em louvor a Virgem Santa. E assim, pode ileso do pecado, passar os longos dias em que aguardava o retorno do padre Nóbrega. [2]

Se os tamoios imolavam seus prisioneiros e comiam suas carnes, em ruidosos bacanais, se o faziam, eram na realidade no cumprimento de um ritual pagão, em que deixavam extravasar todo o ódio e desprezo votados ao inimigo e nunca na satisfação  de bestial sacreifício antropofágico. A não ser seus inimigos, a não ser suas presas de guerra, não se têm notícias de caçadas humanas por eles praticados para a manutençãio de sua própria subsistência.

Prova está na prolongada permanência de Hans Staden, Nóbrega e Anchieta aqui entre eles, sem despertar  o apetite, sem que fossem sacrificados, o que se efetuaria, por certo, se convencessem de fato seus inimigos.

Homem profundamente versátil, José de Anchieta aprendeu a língua dos indígenas, sendo essa uma das características dos jesuítas em missões pelo mundo: aprender a língua nativa para divulgar a crença e trabalhar a catequese na língua do povo receptor. Desde o primeiro contato com os nativos da nova terra, Anchieta mostrou seu espírito arguto e observador. E nesse sentido,  inspirando-se nos costumes e práticas indígenas foi que desenvolveu  o espírito evangelizador de sua catequese.

Portanto, para melhor exercer sua missão evangelizadora e pedagógica com a preocupação didática religiosa Anchieta teve que aproximar seu interesse pelo nativo aprendendo sua língua e conhecendo seus costumes. Aproveitando os padrões culturais indígenas de comportamento, passou a  estudar o tupi para entrar no mundo primitivo dos nativos.

Sua vinda para o Brasil na expedição que trouxe o segundo governador geral do Brasil, não foi obra do puro acaso. José de Anchieta não era apenas um simples noviço. A formação humanística de Anchieta no Real Colégio das Artes de Coimbra, entre 1548 e 1551 lhe proporcionou significativa desenvoltura em língua espanhola, sua língua mãe, além do português e do latim. Já no Brasil pode desenvolver sua técnica de poeta plurilíngue. Ao mesmo tempo em que se inscreve na longa e vigorosa tradição da poesia latina tenta a criação de uma poesia tupi, não folclórica, mas literária. [3]

O papel de Anchieta foi de verdadeiro precursor da nacionalidade brasileira, integrando o gentio com o português e a tradição linguística indígena com a cultura católica. “Aproveitando os padrões culturais indígenas de comportamento, estudou o tupi para entrar no mundo primitivo”, impregnando a poesia, o teatro e o canto como instrumentos de catequização sendo possivelmente o primeiro europeu a fazer uso das práticas desses povos para os fins da catequese. "Mas é singular a produção poética no idioma dos Tupi, grupo linguístico que ocupava quase todo o litoral brasileiro no século XVI. Os jesuítas submeteram esse idioma á disciplina gramatical e ele se tornou, com a designação de língua geral, o principal veículo de comunicação entre colonizadores e indígenas; depois, entre os descendentes dos colonizadores, muitos deles mestiço". [4]

Dessa maneira, como bem afirmou Cassiano Ricardo, “praticou Anchieta um indianismo ao vivo”. Sendo fato de suma importância e remontando à nossa origem literária esse “indianismo brasileiro já está em nossas primeiras letras”.

E toda essa versatilidade linguística e seu indianismo estão em ter escrito poemas na própria língua do índio. Mas – e isto é o que desejo afirmara – não está só em ele ter escrito orações em tupi e sim por dois outros motivos: a) por fazer do índio um tema de ficção; b) por toma-lo como personagem dos seus autos.

A catequese indianista era a principal função de sua pedagogia com preocupação didático religiosa. Para tanto usou de suas poesias e peças de teatro para auxiliar na conversão dos indígenas ao catolicismo. Sob essa ótica escreve a primeira gramática de língua tupi posto que a apreensão da língua dos gentios era de importância tanto para sua pregação evangelizadora quanto para os colonizadores.

"Nas crônicas de Simão de Vasconcelos lê-se com encanto (são palavras de Couto de Magalhães) como o Padre Anchieta compunha seus versos em íngua tupi e como os meninos, à tarde, iam em procissão pelas ruas do nascente S. Paulo, dançando o seu cateretê, cantando versos em louvos à Virgem Maria e parando nas portas dos selvagens.  Estes, seduzidos pelas danças e cantos foram pouco a pouco sendo atraídos pelo CRistianismo até que todos fossem transformnados em homens civilizados." (Marcha para Oeste, pag. 105 - Cassiano Ricardo, Livraria José Olímpio Editora, 1970)

Anchieta soube fazer-se entender por todas as faixas etárias, sempre considerando os entraves da comunicação proporcionados pela diferenciação linguística. A doutrinação de forma sistemática e contundente tocou diretamente na mente do nativo provocando analogias com as ideias de seu próprio mundo.

Na sua poética latina a figura da Virgem Maria é a grande merecedora da das invocações anchietanas. E o marianismo sempre gozou de grande prestígio dentro da Companhia de Jesus e no catolicismo em geral.

Se considerarmos todos os poemas de Anchieta, nos quatro idiomas que eles utilizou, português, espanhol, latim e tupi poderíamos chamar sua devoção religiosa de matriarcal, lembrando ainda que o principal objeto de sua mais linda epopeia latina – De Beata Virgine Dei Matre Maria – foi a figura de Maria, a mãe de Jesus. 

Conforme preleciona Alfredo Bosi  esse poema, escrito na métrica de Virgílio é um poema do renascentismo clássico. O que de certa forma é um tanto atípico porque Anchieta é um espírito medieval. E muito embora sua catequese se mantivesse tradicional ele foi capaz de escrever um poema no latim clássico conforme preconizava o renascimento. [5]

"Escrevendo em latim renascentista sua produção textual é equivalente aos trabalhos de Virgílio e Ovídio, pelo nímero de versos. Anchieta escreveu mais de dez mil versos em língua latima, na maioria, em hexêmeros e dísticos elegíacos."  [6]

E como afirmou Emanuel de Moraes, é certo que a poesia de Anchieta se integrou, quer pelo exercício de sua irrepreensível vocação de apóstolo, quer por haver compreendido a missão superior de poeta, não se guardando entre as preces do claustro ou nos esquálidos louvores aos poderosos. Ao contrário, conduziu-se pelo desejo de dar condições reais de vida feliz ao seu rebanho. Dessa forma pode-se afirmar que sua poesia se integrou no complexo cultural criador, em solo brasileiro, de novas manifestações da linguagem, literatura e humanismo participante. [7]

Uma de suas composições mais belas pela ingenuidade e singeleza, que chegam a ser surpreendentes sabendo-se escrita por um humanista de sua categoria é Ao Santíssimo Sacramento. [8] 

Ó que pão, ó que comida,
ó que divino manjar se nos dá
no santo altar
cada dia!
......................................................................
Vinde, pobres pescadores
a comer!
Que este manjar tudo gasta,
porque é fogo gastador,
que como seu divino ardor
tudo abrasa.
Tal al é desatino,
se não comer tal vianda
com que a alma sempre anda
satisfeita.

Cassiano Ricardo foi um dos primeiros a reconhecer não apenas as qualidades literárias de Anchieta, mas, também, reconhece-lo como o fundador de São Paulo e tê-lo por santo muito antes de sua canonização. De suas qualidades literárias “se pode dizer que foi ele o nosso primeiro indianista”. “Em latim, português, castelhano ou tupi ficaram fragmentos de sua obra.”

Como é sabido, o canário escreveu também diálogos a que dava o nome de comédias. O "Cantos dos Dez Negrinhos", escrito em tupi, "Jesus na Festa de São Lourenço", em tupi e espanhol, e notadamente os autos, fazem parte de sua vária obra  lírica catequista.

O seu indianismo está em ter escrito poemas na própria língua do índio. Mas – e é isto o que desejo frisar – não está só em ter escrito orações em tupi e sim em dois outros motivos: a) por fazer do índio um tema de ficção; b) por toma-lo como personagem dos seus autos. [9]

No decorrer de sua vasta obra José de Anchieta revela suas características humanísticas ao refletir inúmeras vezes sobre os limites e fraquezas de sua condição humana: o amor e o ódio; a coragem e o medo; as certezas e as dúvidas. Todas são peças que se articulam nas diversas atitudes vividas e narradas por ele.

A obra do Pe. José de Anchieta é composta por cartas, sermões, poemas e peças teatrais sobre o Brasil nos primórdios da fase colonial. Sua grande contribuição como precursor da nacionalidade brasileira “integrou o gentio com o português, a tradição linguística indígena com a cultura católica” de seu tempo, conseguindo fazer seu trabalho catequético como obra verdadeiramente participante.

No transcurso de sua vida, José de Anchieta, o jovem e neófito missionário jesuíta que veio ao Brasil Colônia com seu conhecimento e cultura medieval deixou fluir seu indiscutível talento no ofício das letras. E através da dinâmica de seu trato evangelizador foi capaz de fornecer para as gerações futuras não apenas a situação colonial do século XVI, mas, também, a sua consciência religiosa e etnográfica.

No rico itinerário poético brasileiro, a vida e a obra de José de Anchieta foi bastante reverenciada por inúmeros artífices do lirismo nacional. Desse imenso ideário destacamos dois autores de distintas linguagens imagísticas que refletem de modo fortemente substantivo a figura de Anchieta.

De Guilherme de Almeida:

Prece a Anchieta [9]
Santo: erguestes a cruz na selva escura;
Herói: Plantastes vossa velha aldeia;
Mestre: ensinastes a doutrina pura;
Poeta: escrevestes versos sobre a areia!
Golpeia a cruz a face inculta e dura;
Invade a vila multidão alheia;
Morre a voz santa entre a distância e a altura;
Apaga o poema a onda espumejante e cheia...
Santo, herói, mestre e poeta:
– Pela glória que destes a esta terra e a sua História,
Pela dor que sofremos sempre nós.
Pelo bem quisestes a este povo,
o novo Cristo deste Mundo Novo,
Padre José de Anchieta, orai por nós!

De Cecília Meireles:

História de Anchieta (fragmento[12]
“Vede Anchieta, o Santo
que louvara a Virgem
em tão longo canto,
a estender nas mãos
versos e milagres
para seus irmãos.”

NOTAS

[1] Bom dia Ubatuba, pg. 68.

[2] Em Ubatuba, o impossível acontece”, in Bom dia Ubatuba, pg.15.

[3] Cf. Wilson Martins. História da Inteligência Brasileira, vol. 1, pg. 31.

[4] Antonio Candido. Iniciação à Literatura Brasileira

[5] Alfredo Bosi Dialética da Colonização

[6] View of Monumenta Anchietana - Leonardo Ferreira Kaltner - https;//cadernos.abraslin.org<article

[7] O milagre Anchieta. Emanuel de Moraes. Revista da Academia Brasileira de Letras, junho, 1964.

[8] Sabiá & Sintaxe, pg. 96. Cassiano Ricardo. São Paulo, 1974.

[9] Sabiá & Sintaxe, pg. 98. Cassiano Ricardo. São Paulo, 1974.

[10] Messidor

[11] Crônica Trovada da Cidade dde San Sebastia. Poesia Completa, vol. 5, p. 223, Editora Civilização Brasileira/INL. 1974.

[12] Crônica Trovada da Cidade de San Sebastiam in Poesia Completa, vol. 5, p.223. Ed. Civilização Brasileira/INL. 1974.