ISC - Idealizado em 1993, o Instituto Salerno-Chieus nasceu como organismo auxiliar do Colégio Dominique, instituição particular de ensino fundada em 1978, em Ubatuba - SP. Integrado ao espaço físico da escola, o ISC tem a tarefa de estimular a estruturação de diversos núcleos de fomento cultural e formação profissional, atuando como uma dinâmica incubadora de empreendimentos. O Secretário Executivo do ISC é o jornalista e ex-prefeito de Ubatuba Celso Teixeira Leite.
O Núcleo de Documentação Luiz Ernesto Kawall (Doc-LEK), coordenado pelo professor Arnaldo Chieus, organiza os documentos selecionados nos diversos núcleos do Instituto Salerno-Chieus (ISC). Seu objetivo é arquivar este patrimônio (fotos, vídeos, áudios, textos, desenhos, mapas), digitalizá-los e disponibilizá-los a estudantes, pesquisadores e visitantes. O Doc-LEK divulga, também, as ações do Colégio Dominique.

LEK - Luiz Ernesto Machado Kawall, jornalista e crítico de artes, é ativo colaborador do Instituto Salerno-Chieus (ISC) e do Colégio Dominique. É um dos fundadores do Museu da Imagem e do Som de São Paulo e do Museu Caiçara de Ubatuba.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Museu do Tenório


      Texto inédito de LUIZ ERNESTO KAWALL


                   O Museu do Bairro do Tenório, que fundei em 1983, com o saudoso Praxedes Mário de Oliveira, procurou nestes anos resgatar a memória ubatubense, seja através dos festivais de viola, como através de seu acervo típico, com peças e objetos dos hábitos dos moradores dos bairros do Tenório, Acaraú e Itaguá. Com a ajuda inestimável de muitos colaboradores, entre os quais destaco João Teixeira Leite, Arnaldo Chieus e Mestre Otávio, reunimos no predinho do Museu Mais de 1000 pertences dos caiçaras – fotos, álbuns, formões, enxós, pilões, máquinas de moer, serras cadeiras, mesas, lampiões, cestas, anzóis, redes, garrafas – inclusive uma legítima pinga “Ubatubana”, etc., isto é, peças antigas e artesanais. Isto já tínhamos visto, em ponto maior, á claro, no Museu do Homem, de Paris, sendo que, a moderna museologia prega justamente a juntada de peças das comunidades de bairro, como os Museus de Rua, o Museu de Família, e outros, que, em ponto menor, alcançam, pela sua tipicidade, uma amostragem espontânea e fiel do grupo humano.
                   Muitas vezes, o nosso museozinho foi retratado na mídia local e de São Paulo, como único repositório da memória viva de Ubatuba, já que, o “Museu Hans Staden”, fundado nos anos 60 pelo prefeito Ciccillo Matarazzo, Wladimir de Toledo Piza, Paulo Florençano, Washington de Oliveira e este modesto escriba, acabou vitimado por sucessivas e desastrosas administrações municipais – e fechou. Seu rico acervo, dizem, está na Fundart, encostado, à espera de um salvador, que lhe dê dignidade e montagem em nome dos que se interessam pela história tão rica da cidade.
                   Pois é esse, o Museu do Bairro, composto em sua arquitetura com as portas, janelas e vitrôs do Hotel Felipe, da Casa Vigneron e da Fazenda Velha, é que agora, formalizamos sua doação ao Projeto Tamar. Entendemos que, agora associado e de todo integrado ao novo núcleo, possa somar esforços na defesa da ecologia e a natureza da costa do litoral norte do Estado, centrado em Ubatuba, e sob o comando dessa dinâmica oceanógrafa Berenice Gallo.
                   O Museu comporá os prédios administrativos do Tamar, em sua nova sede, em terreno doado pela Prefeitura municipal, sob a égide do IBAMA. Agora, não mais como Museu do Bairro, mas como Museu Caiçara, ampliando a sua ação, a sua temática e a sua filosofia de trabalho. Onde entra agora, também, a defesa da melhoria de vida do caiçara, a defesa da mata atlântica e da natureza bela e majestática da costa azul brasileira. Alguém disso, nesta solenidade, citando Monteiro Lobato – que, aliás, correspondia-se com a nossa escritora caiçara Idalina Graça – que “um país não se faz sem homens e livros”. Vamos, aqui, mudar um pouquinho a frase lobateana, adaptando-a aos propósitos do Tamar, com uma epígrafe, senão uma boutade que se pretende seja oportuna:

                   -Um país se faz com homens, livros e... tartarugas!

MINIMUSEU




TALVEZ seja o menor museu do mundo: mede apenas 4 m por 6 m. Não tem guardas de segurança, não cobra ingresso e só abre aos sábados, domingos e feriados. É assim o Museu do bairro do Tenório, em Ubatuba, São Paulo, onde o jornalista Luiz Ernesto Machado Kawall reuniu peças, documentos e fotos antigas que foi recolhendo durante 30 anos, praticamente desde que construiu sua casa nas proximidades da praia do Tenório.
A intenção do jornalista: a preservação da memória e da cultura caiçara em geral. “Ubatuba é, hoje, uma cidade que não guarda quase nenhum vestígio do seu passado, inteiramente submissa à influência externa depredatória do turismo de massa”. Seu museu comunitário é um local onde os jovens podem ver os retratos dos velhos pescadores e dos caiçaras que formaram o bairro; os documentos que testemunham os tempos antigos; e apreciar peças utilitárias – ferros de passar, anzóis, panelas, máquinas de moer cana, café e milho, lamparinas, remos, cestaria, etc. – que hoje não são mais usadas, mas que faziam parte da rotina das antigas famílias da região. Há também uma coleção de recortes de jornais que tratam do bairro.
Em matéria de museus, aliás, Luiz Ernesto Machado Kawall não é neófito. Na sua casa de São Paulo, no bairro de Pinheiros, funciona um outro museu: ex-votos, quadros de pintura primitiva, cerca de 500 xilogravuras nordestinas e aproximadamente quatro mil livretes de cordel. Foi o jornalista, também, um dos incentivadores e o principal fundador do Museu da Imagem e do Som de São Paulo, durante o Governo Roberto Costa de Abreu Sodré.

SELEÇÕES do Reader’s Digest

Junho 86

FESTIVAL DE VIOLA

Museu vai realizar festival de Arte e viola caiçara


Ubatuba - Cerca de 40 violeiros de Ubatuba, Paraty, São Luiz do Paraitinga, Caraguatatuba e Taubaté estarão reunidos no Sítio Sapé, na Praia do Tenório, em Itaguá, participando do VII Festival de Viola Caiçara e Sertaneja, que será realizado no próximo dia 29, das 14 às 18 horas. Este ano, o festival, promovido pelo Museu do Bairro do Tenório, vai homenagear o mais velho violeiro do bairro, Miguel Firme, o “Miguelzinho”, seresteiro de 76 anos, tocador de cavaquinho, pandeiro e reco-reco.
O primeiro festival de viola caiçara foi realizado em 1959, quando sete violeiros de Itaguá aceitarem o convite do jornalista e admirador da cultura popular, Luiz Ernesto Kawall, para tocarem no seu sítio. A partir desse ano o festival se repetiu com intervalos irregulares, mas sempre com um público cada vez. Nos últimos anos ele tem sido realizado de dois em dois anos e no último atraiu 32 violeiros do Litoral Norte e Vale do Paraíba.
Assim como o festival, o Museu do Bairro do Tenório - considerado o menor museu do mundo e o único do gênero no Brasil - surgiu da iniciativa de Luiz Ernesto Kawall e da adesão da comunidade. Fundado há cerca de seis anos, reúne em seu acervo objetos, quadros, livros, fotos antigas doadas pelos próprios moradores da região.  Algumas dessas peças foram expostas na I Jornada Cultural, organizada pelo Instituto de Estudos Monteiro Lobato, IEML, em junho deste ano. Além dos objetos caiçaras, o museu possui uma biblioteca rural, com livros sobre lavoura e pesca artesanal.
O museu está instalado numa casa de estilo colonial, construída com portas, janelas e tijolos velhos doados pelos próprios moradores. Atualmente, ele é presidido por Praxedes Mário de Oliveira e vem sendo mantido dentro do objetivo de funcionar como um espaço cultural comunitário.
Paralelamente ao festival - que este ano terá como patrono o historiador e ex-prefeito Washington de Oliveira, o “Filhinho” - no Sítio do Sapé estará aberto ao público uma exposição de artistas e artesãos locais, como João Teixeira Leite (máscaras em papel marche), Dona Ritinha (toalhas e cortinas de retalhos), Bigode (escultura em madeira), Adilson Mayer (fotografia) e Edson Athanásio Silva (coleção de fotos antigas de Ubatuba).
Durante o evento, os promotores vão organizar o concurso “Pinte o Museu” coma participação de alunos das escolas estaduais e municipais.
O VI Festival de Viola Caiçara e Sertaneja vai distribuir prêmios entre os participantes, que serão julgados por uma comissão presidida pelo cantor e compositor Renato Teixeira. Os inscritos vão se apresentar em duplas, grupos ou individualmente e haverá também um show com o grupo Paranga, de São Luiz do Paraitinga. O grupo, vencedor de dois festivais anteriores, tinha se dissolvido, mas há cerca de seis meses os seus integrantes voltaram a tocar juntos e o Paranga será um dos convidados desse festival.

Jornal ValeParaibano

Terça feira, 25 de outubro de 1988.

A TRADIÇÃO RESISTE



Um misto de orgulho, afinal sou um morador do Bairro do Itaguá, e de admiração se fundem quando vejo a transformação do Museu do Bairro do Tenório em Museu Caiçara, insistindo em preservar a memória de nossa gente.

Luiz Ernesto Kawall, incansável em sua luta de muitos anos, mostra na prática o que é o respeito às tradições e passa o bastão para a Associação dos Amigos do Museu Caiçara - AAMUC, presidida pelo artista João Teixeira Leite. Nosso primitivista terá pela frente a tarefa de continuar mantendo acesa a chama daquele núcleo que resiste e insiste em passar para as futuras gerações a pureza das coisas, lendas, material de trabalho, artesanato, enfim, a nossa própria história.

O dia-a-dia da campanha impediu que estivesse presente à inauguração para poder cumprimentar o “seu” Filhinho, o Félix José Francisco e os familiares de Praxedes Mário de Oliveira que vieram do Ubatumirim para comandarem a construção do museu.

É mais um importante referencial dentro de nossa política de resgatar e valorizar tudo que simboliza manifestações culturais puras e representativas do nosso folclore.

Consciente das dificuldades de angariar apoio e reconhecimento quando se está fora da administração, encaro, na condição de professor, e agora prefeito eleito, como uma saudável responsabilidade a missão de incentivas dessa natureza. Estamos de uma obra exemplo para exercitar a integração poder público-comunidade e de sua importância para o despertar do amor próprio dos filhos de Ubatuba e também daqueles que juntam a nós para criar uma cidade melhor para todos.

Jornal “A Cidade”, 10.11.96.

O MUSEU CAIÇARA


O Museu Caiçara nasceu de uma ideia do caiçara ubatubense Praxedes Mário de Oliveira e do jornalista Luiz Ernesto Kawall. Inaugurado em 1983, no Sitio Sapé, funcionou primeiramente como Museu do Bairro do Tenório. E assim permaneceu, cercado de violeiros e turistas que apreciavam a cultura caiçara. Era uma espécie de espaço cultural comunitário que contava um pouco da história dos bairros do Itaguá, Tenório, Acaraú, Ponta Grossa e adjacências. 

O Museu do Bairro do Tenório realizou 14 Festivais de Viola e inúmeros encontros caiçaras onde se apresentavam grupos folclóricos regionais. Posteriormente, em 1996, o Museu do Bairro foi doado ao Projeto Tamar-Ibama, onde funciona atualmente. Ampliando a sua ação, a sua sistemática e a sua filosofia. 

A estrutura do Museu Caiçara reporta-se à forma das antigas construções caiçaras, o pau-a-pique, também chamado taipa de pilão. Montada a estrutura básica que consiste em madeira bruta lavrada a mão pelo mestre carpinteiro e construtor Jorge Inocêncio Alves, estas são fincadas nos extremos e no meio das futuras paredes, ligadas na parte superior por madeira bruta. Os vãos dessa estrutura, tanto interna quanto externamente, são preenchidos com um trançado de juçara, obtida do troco de “pés” de palmito, unidos entre si pela casca de uma espécie de cipó denominado “imbé”. Sobre o trançado é aplicado barro convenientemente hidratado e amassado com os pés. 

O chão é de moledo, mistura de argila com cinza, em quantidades ideais que, após socada, formam o piso do Museu. 

 Foram também utilizados na construção do Museu Caiçara materiais egressos de construções antigas: as telhas são da Fazenda Velha, as bandeiras que adornam as laterais são do antigo Hotel Felipe e as vigas e portas de canela da Casa Vigneron, do Itaguá, marcos na memória de Ubatuba.

O Museu Caiçara, idealizado e doado por Luiz Ernesto Kawall, foi construído por Jorge Inocêncio Alves, Manoel Néri Barbosa, Madalena de Oliveira, todos do Ubatumirim. As pinturas são de João Teixeira Leite.

UM DOMINGO LUMINOSO

Era um domingo luminoso, desses que convidam a gente a viver. Saí, e meus passos levaram-me à Rua da Conceição, onde está localizada a Santa Casa de Misericórdia de Ubatuba. . De aspecto humilde, agora reformada pelos esforços dos novos diretores, senhor Agnaldo Salinas, gerente do Bando Novo Mundo, e Armando de Barros Pereira, este contador e fazendeiro, filho de Taubaté, irmão de Urbano Pereira, já citado nestas páginas, que dispôs com a melhor boa vontade, das horas que sobram durante o dia, para dedicá-las, exclusivamente à Santa Casa local. 

É de justiça que falemos do Sr. Armando Bohn, meu amigo de longa data, que também prestou valiosos serviços à esta Santa Casa de Caridade. Faz parte deste grupo de abnegados, Vitor Mayer Leite. Vale a pena narrar sua história. 

Foi em uma tarde de maio, lembro-me bem. Nós já morávamos na Praça Nossa Senhora da Paz de Iperoig. Para ali havíamos transferido nosso meio de vida, com um hotel muito menor que o outro. Porém, o prédio era de nossa propriedade. 

O hotel estava vazio e eu estava ao lado de Albino, já doente por esse tempo; contemplávamos o por do sol. De repente, bem em frente ao mar, surge um casal. Firmo o meu olhar no casal e vejo-o dirigir-se para mim. Ele cinquentão, simpático, bonito mesmo, distinto até nos pequenos gestos que fazia com a mão, a fim de mostrar à jovem esposa, o cenário maravilhoso de nossa terra. Ela morena, cabelos pretos, ligeiramente ondulados, muito graciosa, ouvia com maior atenção suas explicações. O destino fê-los parar diante da nossa janela. Conversamos, trocamos idéias e ficamos amigos. E desde então, quando o senhor Victor saia a passeio com Geralda, certo era parar em nossa casa para uma visita e um cafezinho. E, aos poucos, fui conhecendo melhor a ambos. Vim a saber que o nosso novo amigo era descendente de suíços radicados no Brasil, vivendo no interior do Estado, onde seus pais foram abastados fazendeiros. 

O Sr. Victor, quando jovem, viajou muito e adquiriu amplos conhecimentos de vários países, como a Alemanha, França, Portugal, uma parte da América e outros mais.. É um “gentleman” na ação e na palavra. Amando Ubatuba como ama, radicou-se aqui, lutando abnegadamente ao lado das irmãs de caridade, em missão da A.L.A. (ou seja, Associação do Litoral de Anchieta) e dos demais companheiros, para que a Santa Casa de Misericórdia viesse a ser uma casa de bondade em nossa terra, como realmente está sendo. 

Hoje, após tantos anos de serena amizade, continua sendo para mim o amigo fiel, sempre pronto a estender-me a mão quando tenho necessidade de seu apoio. 

TERRA TAMOIA, página 153/155.

WILLY AURELI

Hoje, passados tantos anos, vejo a praça quieta, simples e bela; a igreja imponente simboliza a bênção de Deus sobre Ubatuba.
Alguém, a quem até o momento estou ligada por indestrutível amizade, o farmacêutico Washington de Oliveira, vem despertar-me dos meus sonhos. Caminhando sorridente ao meu encontro, diz:
– Uma boa notícia para você, Idalina! Um amigo de São Paulo me pede para alugar dois quartos no seu hotel, para ficar mais perto da praia. Pode ser?
– Perfeitamente, meu amigo. Telegrafe que os lugares estão reservados.
– Hoje mesmo telegrafarei e logo ele estará por aqui.


Assim foi que conheci Willy Aureli, que seria o meu anjo da guarda na estrada por onde eu teria que iniciar os meus vacilantes passos na literatura. Gigante físico, cabelos castanhos, olhar claro e suave, como de criança. Apenas conversamos e já nos tornamos bons amigos. Como eu, ele era, e é, um namorado das belezas simples da terra tamoia. 
Gostava de saborear o café da tarde, no momento em que eu o coava. Foi num dia chuvoso que, impedido de tomar o banho de mar, me procurou na cozinha, onde eu trabalhava, para o bate-papo gostoso de costume. E foi sorrindo que me disse:

– Vai perdoar minha intromissão em seus domínios, mas eu adoro café passado na hora.

– Então faça o favor de sentar – disse-lhe eu, lisonjeada pela sua companhia. Sente-se enquanto vou buscar o pão.
Eu rabiscava em pedaços de papel, nos raros momentos de sossego e às escondidas do Albino, que era ciumento de tudo quanto não se referisse a ele. Longe estava de sonhar algum dia sair da minha modestíssima posição, para vir ocupar colunas de jornais e escrever um livro! Esses rabiscos, eu os escondia no bojo de algumas latas, confundidas com outras de mantimento, alinhadas nas rústicas prateleiras da minha cozinha.
Enquanto saí para ir à cata do pão, Willy Aureli guiado por esse instinto peculiar aos repórteres natos, farejou os meus escritos e, ao voltar à cozinha, encontrei-o mergulhado nos meus rabiscos, esquecido do café de que tanto gostava.
– Oh!... – exclamei, sem saber o que mais dizer. – São rabiscos com que vou me distraindo nas horas vagas...
Olhou-me demoradamente, procurando decifrar minha alma. Depois, dobrando as folhas, meteu-as no bolso do blusão.
– São meus segredos, “seu” Willy – argumentei meio embaraçada.
– Deixaram de ser seus. Agora também me pertencem. Sabe, dona Idalina? Acabo de conhecer uma escritora iletrada, mas que tem estilo, tem alma, tem inclinação. Puxa! Até parece incrível!
Sorveu o café, rebuscou em outros potes, e despedindo-se:
– Ainda terá uma surpresa...
Foi uma alegre temporada aquela, em que eu, insignificante criatura, tive a ventura de conhecer o jornalista, escritor e sertanista Willy Aureli. Quero-lhe muito, e não há um só dia que passe se que eu peça a Deus por este amigo, dotado de tão nobres qualidades.
Ele partiu. Eu fiquei sonhando com o olhar claro e simples, como uma réstea de luz que, daí por diante, iria me guiar pelo escuro caminho que eu vinha trilhando.
Passaram-se dias, e qual não foi minha surpresa quando a “Folha da Manhã” publicou uma reportagem em que ele, Willy, contava dos meus sonhos e aspirações, da minha forma de escrever e sentir. E lá estava a minha primeira crônica, “Mentira Viva”, revelando ao público de minha terra o sonho de uma hoteleira, de dizer a todos as belezas de Iperoig. Pensei morrer de alegria!
Terra Tamoia,páginas56/58.



MONTEIRO LOBATO

No dia seguinte amanheceu chovendo, e, como não me era possível eu à praia em buscado pescado fresco, fui ao frigorífico, nesse tempo funcionando onde atualmente está o D.E.R. Da ponte avistei o Dr. Felix Guisard, proprietário do sobradão de Baltazar Fortes, parado à porta principal e em animada palestra com um senhor decentemente trajado, que olhava com viva curiosidade todos os que dali se aproximavam. Acostumada a ver poucos turistas na cidade, fiz um demorado exame do forasteiro. Achei-o bem simpático. Comprei o pescado e, ao sair, notei que ele me acompanhava com o olhar. – Deve ser por causa das vestes masculinas que uso, pensei, para logo depois, absorvida pelo trabalho, esquecê-lo completamente. 

Por este tempo estavam construindo a ponte principal que liga a cidade à praia do Perequê-Açú. – “Com certeza é um dos engenheiros” – pensei. À tarde refugiei-me no quintal para escrever algumas das impressões do dia anterior, quando de minha excursão ao Tenório. Ali fui encontrar-me Albino, que viera do correio com a correspondência, perguntando-me surpreso: 

– Idalina! Quem é aquela senhora que está sentada na sala? 

– Não sei! Tia Rita não disse nada! 

– A velha não está aí. Foi à venda. Vamos ver querida? 

– Vamos. 

Simpática e elegantemente trajada, a senhora ergueu-se sorrindo ao avistar-nos: 

– Bati palmas, ninguém atendeu; fiquei, então, absorvida neste álbum de visitas de Ubatuba, esquecendo-me de perguntar ao senhor, quando entrou, se era dono do Hotel. 

– Eu bem que vi que estava distraída e fui perguntar à minha mulher quem a senhora era. Ela, porém, ignorava sua presença aqui. Quero pedir-lhe desculpas. Estamos prontos para servi-la no que estiver ao nosso alcance. 

Voltando o luminoso olhar para mim, a visitante explicou: 

– É simples: caso não seja impertinência minha, gostaria de saber se a senhora poderá conceder hoje à noite, alguns minutos ao meu marido. Ele veio a Ubatuba conhecer a cidade e a “Solitária de Iperoig”. Se não me engano, estou em sua presença, não é verdade? 

A um gesto meu afirmativo, ela continuou: 

– O principal motivo da minha visita é de dizer a ambos que meu marido se chama José Bento Monteiro Lobato; é escritor e tem interesse em conhecê-la pessoalmente. 

Foi assim que fiquei conhecendo a esposa daquele que, desse dia em diante, seria um de meus maiores amigos. Monteiro Lobato e senhora gostavam de mim, não porque soubesse fazer quitutes, mas por qualquer motivo que eu não conseguia decifrar. Ele, o grande escritor, esta à minha procura. Hospedado no Hotel Felipe, nosso único e competente rival no ramo da hotelaria na época, queria visitar-me e conhecer-me.

E foi nessa noite chuvosa, precisamente quando o relógio da Matriz batia oito horas da noite, que o velho salão do Ubatuba Hotel teve a honra de receber o insigne escritor. Com alegria, ele conduziu a conversa habilmente para o terreno que me interessava, e contou-me porque viera a Ubatuba. Disse-me ter lido na “Folha da Manhã” uma crônica de Willy Aureli, na qual me apresentava ao público como escritora, revelando ainda a minha humilde, mas honrosa, profissão. Willy contara ter eu apenas o primeiro ano do curso primário, caracterizando-me como escritora iletrada; chamara-me a “Solitária de Iperoig”. Lobato, curioso, viera conhecer Ubatuba e a amiga de Willy Aureli. 

Ao terminar a explicação sobre sua presença em nossa cidade, perguntou, entre sério e divertido: 

– Você me quer dizer, Idalina, com que tempo e onde você vai buscar o material necessário a seus escritos? 

– Bem. Eu tenho meus dias de folga, e o restante encontro-o na fantasia dos meus sonhos de verdade. 

– Ou de mentira... agregou. 

– De ambos. Mas, para ser franca, Dr. Lobato, eu escrevo mais sobre os sonhos que tenho enquanto durmo, do que a respeito daqueles que tenho quando estou acordada. 

– E por que esta predileção? Perguntou sorrindo.

– Vou dizer-lhe. É que, durante o dia, trabalho muito, e misturo tudo: camarão, peixe, literatura...

 Soltou uma gostosa gargalhada. 

– Eu sentia que você era assim! Não me quer contar um dos seus sonhos? 

Até hoje pergunto a mim mesma a razão porque escolhi mentalmente um sonho que tivera quando moradora na Enseada. Não conhecia ainda acidade de Ubatuba, e meu marido atravessava, nessa época, uma fase difícil, pensando no lugar onde deveríamos fixar residência. Eu tivera esse sonho, que nos serviu de rumo certo, quanto ao caminho a seguir. Contei-lhe então, como pude, enquanto ele ouvia atento, “O Sonho”.

Noite de tempestade. Sozinha, eu vagava a esmo, molhada, transida de frio, sem uma porta que se abrisse para me acolher. Depois de muito vagar, enderecei minha mente ao Pai misericordioso. Então vi uma casa enorme, de paredes enegrecidas pelo tempo, e, nesta soturna hesitação, uma porta se abrira. Para lá me encaminhei, mas, ó Deus! – a casa tinha uma escada sem degraus. 

Fiz uma pausa, e ele com uma expressão divertida no simpático semblante, perguntou: 

– “E como você subiu, Idalina? 

– Foi essa força extraordinária, que cada um de nós traz em si, que me ajudou. Por três vezes consecutivas tentei subir, mas, para meu desespero, escorregava sempre. Por fim, não sei como, achei-me no topo. À minha frente, abria-se uma estrada larga e sombreada de trepadeiras cheias de flores, que derramavam suas brancas e perfumadas pétalas sobre minha cabeça. Parei, interdita. A poucos passos de distância, um homem todo de branco falava a uma multidão, que o ouvia respeitosamente. 

Nesse momento, ele volveu a cabeça. Seus olhos encontraram-se com os meus, enquanto seus lábios terminavam de pronunciar esta frase: – “Todo aquele que vier a mim, encontrará a glória.” 

Mas... então, estremeci, ferida pela semelhança profunda de Lobato com o ser do meu sonho. 

– Que há Idalina? Cansada? indagou. 

– Não! Nem um pouco. Mas, acredite-me: a tal visão era o senhor! 

Olhou para mim pensativamente e disse: 

– “Eu sabia que já nos tínhamos encontrado antes. Porém, nesta existência, é a primeira vez.” 

Já refeita da surpresa que sentira ao verificar, depois de oito longos anos que, afinal, encontrara o homem com quem sonhara naquela noite de tempestade, silenciei. 

–Terminou, Idalina? perguntou interessado. 

– Sim, senhor. Mas, estou pensado que o senhor não tem cara de santo para dar glória àqueles que se aproximam de sua pessoa. 

Ele passou lentamente a mão pelo queixo, onde a barba feita de véspera despontava violenta. – Isto é o que você diz. Muita gente errada por este mundo a fora, já me chamou de santo. E, levantando-se: 

 – “Vamos, Purezinha, que este fenômeno aqui, de dia, é cozinheira e a noite é viajante sideral...” 

Terra Tamoia – páginas 75 /79.

PROFESSOR TEODORICO DE OLIVEIRA

Durante a minha ausência, tinha chegado hóspedes. Um deles conquistou-me desde logo. Simpático, alegre, dono de uma prosa que fazia muitos meses eu não tivera oportunidade de ouvir no hotel. Tornamo-nos bons amigos. Disse-me ser professor aposentado.

– Sou filho do município de Ubatuba. Nasci lá para os lados da Ribeira. Saí criança daqui, estudei e me formei, porém, na minha mocidade, lecionando por este mundo a fora, nunca esqueci minha terra; aqui estou agora, incumbido pelo governo do Estado de fundar o Entreposto de Pesca. 

O professor Teodorico de Oliveira foi o primeiro homem que conheci naqueles dias, a serviço do governo do Estado, disposto a amparar o pequeno pescador. 

Outros dias vieram. E era de ver a alegria que ele irradiava, metido em uma calça de zuarte grosseiro, camisa aberta ao peito, uma inseparável piteira nos lábios, movimentando-se entre os operários, exposto ao sol causticante, que, no dizer dele, o rejuvenescia. 

E, daquele charco de guanxuma e lama surgiram, pouco a pouco, os alicerceares do edifício que atualmente é a sede do D.E.R. 

Mas, voltemos àqueles dias, em que o progresso estava bem longe de Iperoig e nós tínhamos o sentimento de que o sol, mar, praia e luar, eram propriedades nossas. 

O professor dizia: 

– Antevejo, Idalina, que não alcançarei o progresso de Ubatuba. A idade não permitirá. Mas se você viver até lá, lembre-se de que dei o que pude para alcançar o sonhado objetivo: a proteção ao pequeno pescador. 

Ele morreu. Não sem antes ser ferido pela ingratidão dos homens. Paz à sua alma. Que os mesmos que o feriram compreendam um dia, nesta vida, como erraram e assim possam alcançar o perdão. 

TERRA TAMOIA – Páginas 88/89.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

FLORES, ARTES, CANÇÕES E A ALMA DOS FESTIVAIS...


O Sitio Sapé se engalanou, sempre, com os Festivais de Viola – Caiçara e Sertaneja. Vinham sertanejos das cidades e dos sertões. O Grupo Paranga, de São Luiz do Paraitinga, moças lindas, ganhavam cada vez que se exibia. “Seu” Otávio, o violeiro, sempre ajudava a receber o pessoal da viola e da dança. Era um folclore puro, uma festa de cores e alegrias, que reinou 13 vezes no Tenório, atraindo a atenção popular e das autoridades. 

Lembro da criançada do “Era uma Vez”, escola pioneira do Itaguá, com suas professoras Odete e Tixa, desenhando e pintando as duplas de cantadores, o Ari Mattos como sempre o apresentador oficial da festa, o júri dos festivais, comandado por um “seu” Filhinho, um Felix Francisco, os comes e bebes comandado pelas senhoras voluntárias da Cida Origuella. Elas faziam um gostoso “peixe azul” no fogo de lenha e todos se deliciavam (os violeiros, de graça). 

Quem ajudava eram os amigos e os caiçaras do bairro. Se havia algum “lucro”, com a venda de doces, pipocas, entradas (“Circo Arranca Toco” se exibia), era destinado aos vicentinos da Capela do Itaguá. Os caseiros do Sítio Sapé, Velho Augusto e Parú, comandavam a engrenagem do Festival. E também amigos como o Arnaldo Chieus e o Celsinho, e o casal Walmar e Ricardo que traziam as crianças da Escola Altimira Silva Abirached, do bairro do Itaguá promovendo todo tipo de recreação, promovendo trabalhos manuais, arte infantil e pinturas. Tudo isso exposto na hora mesma da produção e apreciado pelos adultos, pais, familiares e o público em geral. 

O João Alegre cantava, sempre. 

Cada Festival durava o dia inteiro, exibiam-se as duplas e os violeiros, num tablado arrumado no centro do Sítio – onde estava uma escultura espontânea, que armei com bambus cheios de cracas, achados na Praia Grande, depois das chuvas. Ficou um trabalho original, a la Niemayer, que depois chamei “Homenagem ao Pescador Caiçara Desconhecido”. O Paulo Florençano, folclorista e escritor, vindo de Taubaté, fotografou aquela arte “espontânea” e bela. 

Lembro-me dos prefeitos de Ubatuba, que vinham sempre, gostavam da festa, abraçavam os cantadores, davam entrevista ao Jurabello, da Costa Azul. Celso Teixeira Leite, Pedro Paulo Teixeira Pinto, Zizinho Vigneron, Fiovo Frediani, José Nélio de Carvalho... Certa vez, trouxe de São Paulo o Zé Ketti, que presidiu o júri. Também veio o Paulinho Nogueira. O Renato Teixeira certa ocasião participou de um dos festivais, dando um verdadeiro show, tocou músicas do sertão, contou histórias dos tempos da Ilha Anchieta... 

No Museu do Bairro do Tenório, a gente expunha fotografias da memória caiçara do colecionador Edson Silva, além das pinturas primitivistas de João Teixeira Leite, esculturas do “Bigode”, cerâmica das figureiras de Taubaté, pássaros e artesanato dos quilombolas da Casanga. O Jacob num misto de escultor, músico e filósofo performático expunha seus emblemáticos entalhes e composições com madeira. 

Uma vez chegou um fotógrafo de Lorena, Adilson Maier, com excelentes fotos da gente caiçara e dos “velhos” da Picinguaba num trabalho denominado por ele como “Miscelânea Caiçara”, numa homenagem à nossa sempre querida e inesquecível Idalina Graça. Tudo era um show de arte, cultura, cantoria, dança e folclore. A TV Globo chegou a cobrir umas 5 vezes o Festival, com Carlito Maia à frente, e o repórter Ernesto Paglia. A mistureba estava assim feita... O Julinho, o Velho Rita, o Jorge, o Otávio, os Barroso, o Beto, o Raposa, os Quincas e Janguinhos, o artesão Carlos Rizzo, o Miguelsinho, o seu Albino... Ali estava todo o Tenório, o Acaraú, o Itaguá. A linda Carlota e o Cícero Assunção, o Zizi e o Barriquinha, o Professor Joaquim Lauro e Dª Zezé, as famílias Pirozzi, Dª Carmem, Aloysio, Ruth, Zilda, Márcia, Tixa, Helena, gente entrando e saindo, o quentão e a comida, os corações e as almas da gente voando, ganhando o céu radioso de Ubatuba.