ISC - Idealizado em 1993, o Instituto Salerno-Chieus nasceu como organismo auxiliar do Colégio Dominique, instituição particular de ensino fundada em 1978, em Ubatuba - SP. Integrado ao espaço físico da escola, o ISC tem a tarefa de estimular a estruturação de diversos núcleos de fomento cultural e formação profissional, atuando como uma dinâmica incubadora de empreendimentos. O Secretário Executivo do ISC é o jornalista e ex-prefeito de Ubatuba Celso Teixeira Leite.
O Núcleo de Documentação Luiz Ernesto Kawall (Doc-LEK), coordenado pelo professor Arnaldo Chieus, organiza os documentos selecionados nos diversos núcleos do Instituto Salerno-Chieus (ISC). Seu objetivo é arquivar este patrimônio (fotos, vídeos, áudios, textos, desenhos, mapas), digitalizá-los e disponibilizá-los a estudantes, pesquisadores e visitantes. O Doc-LEK divulga, também, as ações do Colégio Dominique.

LEK - Luiz Ernesto Machado Kawall, jornalista e crítico de artes, é ativo colaborador do Instituto Salerno-Chieus (ISC) e do Colégio Dominique. É um dos fundadores do Museu da Imagem e do Som de São Paulo e do Museu Caiçara de Ubatuba.

sábado, 30 de março de 2019

Prefácio à TERRA TAMOIA

Willy Aureli
Foi em janeiro de 1931 que conheci Ubatuba, quando, a serviço da ”Folha da Noite”, realizei uma reportagem na Ilha dos Porcos, onde para mais de 400 infelizes se encontravam detidos. 

Tinha alcançado aquele presídio de tão tristes recordações, a bordo de um naviozinho da “Costeira”, que, por uma deferência toda especial à minha condição de jornalista, fez uma atracação fora do programa na ilha, que agora tem o nome do taumaturgo Anchieta. Lá permaneci uns dias, entrando em contato com todos os presos, ouvindo deles as lamúrias, as queixas, os apelos. Entre eles havia nada menos do que 16 completamente inocentes, vítima da sanha de erros policiais desalmados. Um era oficial de um transatlântico italiano e fora apanhado na faixa do cais de Santos, atordoado pelas bebidas, e que, depois de despido da sua brilhante farda, descalço, sem nenhum documento e espoliado do seu dinheiro, tinha sido metido no porão do navio que levava presos para a ilha. Trabalhava como motorista do diretor do presídio, enquanto a sua família, em Gênova, continuava desesperada pelo sumiço misterioso do ente querido. 

Sucede que durante o período em que me encontrava na ilha dos Porcos, o naviozinho, que era o único elo ligado Ubatuba ao resto do mundo, pifou de vez, por não receber, a companhia a que pertencia, as subvenções governamentais que lhes eram devidas. Dessa forma fiquei ilhado também, apesar da responsabilidade que tinha em São Paulo em data certa, pois a minha reportagem deveria der o “prato forte” do número especial de aniversário do jornal. 

Metido numa grande canoa, em companhia do presídio, alcancei a duras penas, devido ao mar revolto, a praia da Enseada, de onde, encarapitado no lombo de um cavalinho, cheguei a Ubatuba, então imersa no esquecimento dos paulistas. 

Aboletei-me num vetusto casarão onde se localizava o hotel da terra. O único hóspede que lá encontrei foi o juiz de direito da pacata cidade. Havia um amigo a minha espera, Washington de Oliveira, então jovem farmacêutico e correspondente local das ”Folhas”. Até hoje essa amizade nos une fraternalmente. Ele foi o meu cicerone em Ubatuba, e, através do seu entusiasmo ao descrever as belezas rústicas do lugar, eu adentrei na arcana maravilha dessa pérola, mergulhada no marasmo das coisas esquecidas. E, pelas palavras cheias de sentimento regionalista e justificado entusiasmo pelo passado da histórica cidade, Passei a olhar o casario em ruínas, os velhos e sombrios sobradões, as candeias espetadas nas esquinas, os portais floridos, que atestavam passado brilhante, com outros olhos, bem diferentes daqueles que tinha, quando, suado, cansado, irritado, descera dos magérrimos costados da montaria que trouxera desde a Enseada. 

Acontece que Ubatuba, nessa época, estava completamente isolada do resto de São Paulo, pois não existiam estradas para coloca-la em contato com as localidades vizinhas. Apenas uma tortuosa vereda, restos desbarrancados da antiga estrada imperial, que grimpava a imensa serra em demanda ao alto, e, de lá, até São Luiz do Paraitinga, numa extensão de 10 léguas bem mantidas, ou seja, 60 quilômetros. 

O juiz, Washington de Oliveira e o então dono do hotel, deram-se ao trabalho de arrumar, para mim, uma condução. A única possível, um cavalo. Asseguraram-me que, alcançando S. Luiz, Lá encontraria condução mais confortável até Taubaté, a 60 quilômetros adiante. Impossível, em rápidas palavras, dizer dos três dias encantadores que passei em Ubatuba. Retrocedi séculos, vivendo a vida primitiva, gostosa, bela, pura, entre gente de alma e coração cheios de bondade. 

Como guia da viagem, teria aminha disposição o estafeta dos correios, que, em dias determinados, armado de uma garruchinha espanta mosquito, e carregando às costas um saco com pouca correspondência, galgava as íngremes encostas da serra para cumprir a sua missão, levando a mala postal até S. Luiz. Um herói esse homem. Iniciada a caminhada, que jamais esquecerei, ainda no sopé da serra, após estirão que parecia não ter mais fim, fui alcançado por um baiano tropeiro, que comboiava oito mulas robustas, e que, temeroso da viagem no meio da floresta, dera-se pressa em alcançar-nos, confessando a sua imensa satisfação em ter conseguido companheiros para a travessia. Foi o que me valeu. Valeu-me a sua tropilha, que o meu cavalo, após os primeiros quilômetros, não mais aguentou o meu peso. Pudera! Ele deveria ter sido nutrido com conchas da praia e estava exausto desde os primeiros passos. 

Fomos subindo aos poucos, lentamente, ziguezagueando por baixo dos túneis esverdeados da densa floresta. Alguém tinha feito uma “espera” com espingarda de carregar pela boca, e, próximo a ela, encontramos os restos de uma respeitável onça pintada, já semidevorada pela vermina e exalando cheiro pestilencial. Muitos macucos pelas adjacências, fácil me foi abater um deles com o tiro de uma 32. Mais tarde, no alto da serra, devoramo-lo no espeto. 

Subindo devagar fui notando os vestígios da velha estrada. A certa altura encontrei trilhos de estrada de ferro. O meu estafeta guia contou-me, então, que no tempo do império tinha havido uma estrada muito bem conservada, ligando o Vale do Paraíba ao porto de Ubatuba, por onde o café descia no lombo de burro para ser embarcado nos navios. Nos primórdios da República, tinha iniciada a construção e uma estrada de ferro para ligar o “continente” a Ubatuba, cousa que jamais aconteceu, devido à concorrência que favoreceu o porto de Santos. 

Notei que não seria difícil desbastar a floresta que se assenhoreava da velha estrada e restabelecer uma via de comunicação razoável, ligando Ubatuba a Taubaté. Guardei para mim esse achado e fui continuando até São Luiz, onde, exausto, mas desejando exibir as minhas qualidades de perfeito ginete às moças bonitas que enfeitavam os balcões fronteiros ao hotel, desmontei tão bem que acabei sentado no chão, pois as pernas anquilosadas não corresponderam. 

Qual não foi meu desespero quando soube que nenhuma condução havia entre S. Luiz e Taubaté! Eu deveria continuar a cavalo e sozinho, pois o baiano havia ficado para trás com a sua tropilha, e o estafeta dos Correios diluíra-se, após uma despedida apressada. 

O dono do hotel foi procurar alguém que me quisesse alugar um animal e não tardou a aparecer com um cidadão que me pesou com os olhos, calculado exatamente as minhas arrobas. Depois tratou o preço, que aceitei por não estar em condições de discutir. – uma fortuna – 50 mil réis e mais 20 mil réis para o rapazinho que iria a pé comigo, para trazer o animal de volta. Assegurou-me, o dono do cavalo, que o mesmo era bastante robusto e aguentaria bem a viagem. E foi assim que no dia imediato, sentindo as dores da primeira cavalgada, sentei-me na estreita sela e dei começo à segunda etapa da minha inesperada aventura.

Começou a chover. Só tinha, sobre o corpo, um terno de brim e carregava na pequena maleta apenas duas camisas e alguns petrechos de toalete. Aguentei a chuva com forçada filosofia. Escorreguei-me da sela, por ter pranchado o animal, uma dúzia de vezes, enlameando-me até a raiz dos cabelos. E por volta das 23 horas, num estado deplorável, esfomeado, sedento, raivoso, cheguei a uma estranha estalagem em Taubaté. 

O noturno da Central passaria às 2 da madrugada. O hoteleiro das proximidades da estação olhou-me com surpresa devido ao meu estado de... limpeza. Dando-me a conhecer, porém, aceitou-me de boa cara, fornecendo-me, apesar da hora avançada, ótima refeição. Às 2 em ponto – na época um milagre dos milagres – chegou o noturno da Central, e, pela manhã, estava em S. Paulo, onde um bom chuveiro e roupas limpas restituíram minha abalada personalidade. No mesmo dia escrevi a reportagem que se tornou famosa: “A ilha do Diabo Paulista”. E logo mais ia procurar em seu gabinete o General Cordeiro de Farias, então Secretário da Segurança em nosso Estado, para lhe entregar a lista dos inocente detidos na Ilha dos Porcos e apresentar-lhe um projeto, de aplicar os presos, que viviam na mais absoluta vadiagem, no restabelecimento da estrada, que o tempo e o abandono haviam destruído e que daria vida de novo a Ubatuba. 

Os 16 presos inocentes receberam ordem de soltura imediata e os demais, com prêmios pré-fixados foram postos a trabalhar na estrada. E o antigo caminho ressurgiu, agora permitindo a passagem de automóveis, levando o oxigênio da civilização à coletividade daquela cidade esquecida. Missão cumprida. Não pensei mais em Ubatuba. 

Eis que em 1936, lembrei-me, na época das férias, da cidade praiana. Resolvi, com minha tribo, descer pela estrada que eu ajudara a abrir. Metidos num fordeco despencamos serra abaixo. Eu, minha mulher, minha primogênita, dois cunhados, dois sobrinhos e bagagem, que mais parecia pertencer a uma companhia de operetas. Como coube tudo isso no carrinho e como fomo e voltamos sem, novidade, permanece mistério. 

Foi quando conheci Idalina Graça, a nova proprietária do hotel instalado no imenso casarão assobradado. Pagava-se, nesses maravilhosos dias, a diária de 10 mil réis. E, olhem lá, havia quem achasse muito caro... 

Aboletamo-nos, alegres, satisfeitos da vida, nos vastíssimos dormitórios que antes havia servido aos Cunhambebes da terra. Camas limpas, pregos nas paredes de madeira para pendurar as roupas. Nada mais. Mas havia tamanho coração de Idalina e no seu marido Albino, a mesa era tão farta, tão gostosa, que teríamos aceito até dormir no chão. 

Dias maravilhosos aqueles! Esbaldamo-nos pelas praias. Regressamos totalmente conquistados por Ubatuba e durante todos os anos que se seguiram continuamos a gozar nossas férias na vetusta cidade. Houve interregnos. Minhas andanças pelo sertão; jornadas nem sempre alegres em minha vida particular. Depois retomei o ritmo até hoje. É em Ubatuba que somente consigo reequilibrar o meu espírito às vezes conturbado. Foi em Ubatuba que os meus filhos deram os primeiros passos nas areias da praia. Foi em Ubatuba que os meus netinhos fizeram o mesmo. Em Deus me protegendo e deixando-me esta estupenda vital idade que me é companheira, quiçá ainda veja meus bisnetos saltitar as suas primeiras andanças marítimas em Ubatuba, a feiticeira! 

Voltemos ao que interessa. 

Foi em 1938, quando já éramos hóspedes costumeiros no hotel Ubatuba, que eu “descobri” a escritora Idalina Graça, que hoje se apresenta com Terra Tamoia, fadada a esse sucesso que, já nesse ano da descoberta, eu profetizava em minha crônica da “Folha da Noite”, intitulada A Solitária de Iperoig. 

Conta, Idalina, em suas páginas, como foi descoberta, e como o episódio lhe propiciou o começo de uma nova vida, arrancando-a ao limbo onde permaneceria indefinidamente, sempre temerosa de se abrir sobre seus escritos com desconhecidos. Ela trazia em si a potente força de sentir, de monologar, de alinhavar com as garatujas e 2º ano escolar, narrativas estupendas, observações maravilhosas que lhe desnudavam a alma poética, contemplativa, trancada num invólucro rústico. Famosa na terra de Ubatuba como emérita pasteleira, arte essa que a possibilitou amealhar o suficiente para incríveis empreitadas, Idalina, nos raros momentos de lazer e às escondidas do marido, que tinha ciúme dos garranchos da nobilíssima esposa, entregava a pedaços de papel, que arrancava de cadernos ou de agendas, tudo quanto lhe ia, em tumulto, no coração generoso, no cérebro claro, na alma adamantina! 

Descobri o segredo de Idalina de forma insólita e graças a esse faro próprio de repórter sempre em busca de novidade. Enquanto aguardava um cafezinho na escura e atravancada cozinha do arcaico hotel, meti o nariz numas latas vazias, alinhadas em prateleiras, que disputava sua cor com o negro das paredes. Numa dessas latas encontrei uns escritos. E, neles, toda maravilha brotada da pena de uma escritora em potencial, de imensas possibilidades. Uma revelação! 

Lancei-a, assim como anos depois e pelo mesmo jornal eu deveria lançar Carolina de Jesus. Nasci, pelo visto, com os pendores naturais de descobrir escritores inéditos e Monteiro Lobato, o saudoso mestre, deu-me pressa em ir conhecer essa 8ª maravilha, dedicando a ela a sua boa e meiga amizade, e constatando, as reais qualidades da escritora que eu revelara ao Brasil. 

Dias sombrios, de luta, de amargor, pontilharam a vida de Idalina Graça. Firme, porém, sólida em sua caminhada atribulada, permaneceu fiel aos seus propósitos de se tornar uma escritora. Nada a abateu. Eu lhe conheço todos os percalços e poderia dizer o quanto padeceu, não fora ferir essa incrível delicadeza de alma, que lhe é traço predominante. Conservo com carinho a sua amizade e sou largamente retribuído. Hoje é-me dada a honra de prefaciar seu trabalho, encontrando nele joias maravilhosas, simples, infantis às vezes, mas sempre joias puríssimas e fulgidas! 

Terra Tamoia é um depoimento sobre usos, tipos e costumes de Ubatuba de outrora, antes do evento súbito que atraiu para ela o interesse de gente nova, que ali foi construir suas casas de recreio, colocando festões modernos nas belezas naturais, na mais linda cidade do litoral paulista, onde se aninham as mais belas praias brasileiras, e onda ainda se respira, a despeito do imenso caudal de visitantes, a pureza e a simplicidade de um passado não muito remoto de simplicidade e de pobreza. Terra Tamoia é um repositório de cousas interessantes para a história do torrão pátrio. Idalina Graça com seu notável trabalho, doa à bibliografia nacional um capítulo de raro valor, um compêndio de lendas e estórias, um feixe de facetas folclóricas, que ainda será consultado por muito escritor, desejoso de saber notícias do passado do antigo porto de café de S. Paulo. 

Idalina Graça é uma escritora que entrega, pelos seus méritos exclusivos, ao Brasil, uma gema, gema essa que brotou apenas dela, exclusivamente dela, absolutamente dela. Há, em seus escritos, verdadeiros arpejos. Há tocatas que comovem. Há harmonias que elevam o espírito. Há, sobretudo, singeleza e sinceridade! 

Nenhum valor maior teria essa obra se Idalina Graça fosse formada por alguma faculdade ou diplomada por algum instituto de cultura superior. O valor de Terra Tamoia está no extraordinário esforço de alguém que não estudou, não conheceu autores, e que conseguiu escrever o livro, palavra por palavra, juntando-as para formar sentenças, frases, episódios d, de forma escorreita, assimilável e amiga! 
Willy Aureli Prefácio ao livro “TERRA TAMOIA

CAVALHADA

Entre os folguedos populares dramatizados a cavalhada ainda guarda parte de sua tradição realizando um ato conhecido por Embaixada tendo por base a representação de lutas entre mouros e cristãos numa referência às batalhas de Carlos Magno contra os mouros onde a temática é a luta entre cristãos e mouros. 


Reminiscente dos torneios da Idade Média, a cavalhada reporta-se ao tempo em que a Península Ibérica estava em luta contra os mouros, época em que os costumes feudais da cavalaria são introduzidos nessa parte da Europa. Na renascença esses costumes caíram no ridículo e foram retratados por Cervantes em seu genial Dom Quixote de la Mancha. Porém, não deixou de ser reverenciado entre os ibéricos e foi introduzido no Brasil à época da colonização. A cavalhada brasileira é de origem ibérica e remonta a luta dos cristãos contra os mouros. 

Entre nós a cavalhada difundiu-se nas regiões tradicionalmente pastoris para o preenchimento das horas de lazer entre cavaleiros e com o tempo ganhou função dramático religiosa, constituindo-se numa grande festa, a de reviver a luta entre cristãos e mouros, apresentando aspectos lúdicos e também alguns aspectos religiosos numa espécie de torneio dramatizado. 

O início é realizado em tons solenes, aos sons de trombetas. Duas hostes de cavaleiros adentram ao campo, diferenciando-se pelas cores das roupas, uma representando os cristãos, com vestes azuis, e outra com vestes vermelhas representando os mouros. 

Segundo Alfredo Maynard Araújo, a cavalhada teatral, de herança portuguesa é a forma mais antiga, introduzida no Brasil no século XVII. Compõe-se de duas partes distintas; a dos jogos onde há disputas e evoluções e a dramática, bem mais teatral, onde se faz a representação da luta entre cristãos e mouros. 

Antes da apresentação é comum os cavaleiros desfilarem pelas ruas da cidade ao toque de clarins, anunciando a cavalhada. 


O número de participantes da cavalhada é vinte e quatro, pois doze eram os pares de França. São dois partidos que tomam parte: o Azul, ou dos Cristãos, tendo por chefe o General, e o vermelho, ou dos mouros, dirigidos pelo Rei. Tanto o General como o Rei são chamados de Mestres e ambos têm seus contramestres. Por se tratarem de duas hostes opostas, cada uma possui um espia que se veste com roupas de palhaço ou mesmo com alguma fantasia bizarra e máscaras. 

Ao início, um cavaleiro mouro, em tom provocador, dirige-se aos companheiros dizendo: – Ilustres companheiros, invencíveis contra os cristãos, a guerra para nós se faz preciso. Desde já jureis pelo Alcorão morrer ou vencer pelo Profeta ou pro nossa santa crença. Os cristãos aceitando o desafio respondem em linguagem gongórica: 

– A cruz de Cristo vencerá, como sempre, o réprobo Maomé. 

 Ao soar de clarins entram em campo os vinte e quatro cavaleiros com suas vestes reluzentes, azuis e vermelhas postando em lados distintos do campo, os cristãos a leste e os muros a oeste. 

Dentre os mouros destaca-se o espia, que envereda campo adentro. Pouco depois vem o espia cristão, mas antes que este chegue, um soldado cristão mata o espia mouro. E o soldado do General, de espada em riste, transpassa-a entre o corpo e o braço do espia, que cai no chão fingindo estar morto. O soldado cristão finge que finca a espada perto da cabeça, como quem quer separar o corpo. O contramestre do Ri, sabendo que foi morto seu espia, chega ao centro do campo e inicia uma troca de palavras dando início à Embaixada. 

Quando os mouros procuram aprisionar os cristãos que oferecem resistência, matam o espia dos azuis. Há então um pequeno combate simulado, retinir de espadas e uma luta onde os vermelhos sairão perdedores. 

São todos aprisionados, descem dos cavalos e, a começar pelo Rei, ajoelham-se frente ao General. O General, diante do mouro, coloca a espada em seu ombro, batizando-o. Em seguir todos levantam-se em congraçamento e formam um só grupo, os Doze Pares de França. 

Daí por diante, chefiados pelo General, dão início às exibições de agilidade, perícia e habilidade de cavaleiros executando manobras com diversas figurações: “oito”, “volta garupa”, “xis de espada”, “carreira avançada”, “carreira pintada”, “caramujo” e “S dobrado.”. 

Também encontramos em nossa região, à época das Festas de São Benedito e São Luiz do Paraitinga e Guaratinguetá, as chamadas Cavalhadas de Cortejo, que consiste apenas em um desfile de cavaleiros acompanhando procissão. Em geral esse tipo de cavalhada é denominado “cavalaria de um determinado santo”: Cavalaria de São Benedito (Guaratinguetá, São Luiz do Paraitinga, Atibaia), Cavalaria de São Roque ou Cavalaria de São Jorge. Em geral, quando termina a procissão, os cavaleiros ou “corredores” de tal santo fazem algumas evoluções simples como a meia lua, o caramujo e a manobra zero. 


 Aqui perto, em São Luiz do Paraitinga, se conheciam dois tipos de cavalhadas, a teatral, de cunho dramatizado e a religiosa, também chamada cavalhada de cortejo ou cavalhada de São Benedito onde os cavaleiros se vestiam de branco, a cor a roupa preferida pelo santo. 

Na literatura brasileira encontramos autores que incluem em suas narrativas os enredos de cavalhadas, como é o caso do romance O Garimpeiro, de Bernardo Guimarães Em As Minas de Prata, de José de Alencar, há uma descrição de cavalhada na Bahia, em 1609. 

No “Romance da Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, o festejado romancista pernambucano descreve a Cavalhada de Taperoá, interior da Paraíba onde os “Azuis” disputaram troféus com os “Encarnados”, no jogo das argolinhas, que é comum em algumas cavalhadas nordestinas. 

Jean Baptiste Debret, que veio ao Brasil em 1816, tendo permanecido por 15 anos, em Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, descreve as cavalhadas como introduzidas por governadores portugueses das províncias. Outras descrições são registradas por Auguste de Sant-Hilaire em seus livros sobre as viagens que fez pelos interiores do Brasil. Há também, alusões às cavaladas nas obras de Spix e Martius.

sábado, 16 de março de 2019

Lenda do Ouro do Corcovado


Conta a lenda que um Capitão chamado Manuel Fernandes Corrêa era proprietário de uma fazenda na Praia Dura. Um dia sua filha Alice resolveu fazer um passeio e embrenhando-se pela mata acabou se perdendo. Como prêmio o pai de Alice prometeu, ao escravo que encontrasse, liberdade imediata. Pedro, um escravo forte, conseguiu encontra-la após longa procura, trazendo-a carregada de volta. Alice fora encontrada no alto do Corcovado. No dia seguinte o escravo foi açoitado por não trabalhar devido ao cansaço, pelo esforço dispensado na procura de Alice. 

 Esta, sabendo do acontecido, exigiu do pai que cumprisse o prometido, ou seja, libertar o escravo que a encontrara. Vendo-se liberto, Pedro beijou as mãos da moça Alice e partiu sem destino para os lados do Corcovado, lá instalando uma choça ao lado de uma velha cascata, próxima à escarpa misteriosa. Pedro vinha sempre à Vila trocar canudos de Taquaruçú cheios de grãos de ouro, por fumo, cachaça, gêneros etc. 

Essa notícia foi também bater na fazenda do Capitão Corrêa que, uma noite, em companhia de um grupo armado, foi à choça de Pedro, capturou seu ex-escravo e levou-o para a fazenda. Lá chegando, Pedro foi torturado para contar como e onde descobrira aquele fabuloso tesouro. O escravo suplicava para não o forçarem a falar, pois não podia contar. Após novos sofrimentos, chicotadas etc., Pedro resolveu falar: Estava morando no Corcovado, na choça perto da cascata, quando soube da morte de Alice. A noite não conseguira dormir parecendo-lhe ouvir ao longe a voz cristalina da moça numa canção de amor. De repente, a porta do casebre tremeu e escancarou-se, penetrando por ela um vulto de mulher! Era Alice! Ele a reconheceu. Como que agarrado por mãos invisíveis, não pode se mover do lugar em que estava. Mas ouviu perfeitamente a visão dizer: “Pedro! Tu foste um dia meu salvador. Dei-te a liberdade, mas sei que tu sofres neste exílio maldito, onde te arrojou a crueldade de meu pai. Não te assustes e ouve-me. Não muito longe daqui, oculta nas entranhas da terra, existe uma grande mina de ouro. Ela será tua, sob a única condição de nunca revelares a outrem esse lugar cobiçado. Se isso tentares a vingança do gênio protetor da mina cairá sobre a tua cabeça, ouviste? Cuidado, pois, e segue os meus passos”. 

“Negro maldito” gritou o capitão: “Não retardes a revelação. Onde está o tesouro?” 

“Sinhô... Tá lá pra banda do ...” E o ruído do baque de um corpo encheu a sala da casa grande. Pedro caíra morto, fulminado antes de revelar o sítio misterioso do cobiçado tesouro, que até hoje jaz nas proximidades do Corcovado. Pedro bem dizia: “Pedro um pode conta...”

 Essa maravilhosa lenda dos idos tempos permanece até hoje no coração dos velhinhos da minha poética Ubatuba e quando a lua amiga e prateada inunda a terra tamoia com seus filamentos que se emaranham por entre o verde copado das velhas árvores de Cunhambebe, a mim me parece escutar, no murmúrio da brisa que irmana aos filamentos dessa mesma lua, a voz longínqua do preto torturado pelo açoite: 

“Sinhô, preto num pode contá...” 

BOM DIA UBATUBA páginas 77/78