ISC - Idealizado em 1993, o Instituto Salerno-Chieus nasceu como organismo auxiliar do Colégio Dominique, instituição particular de ensino fundada em 1978, em Ubatuba - SP. Integrado ao espaço físico da escola, o ISC tem a tarefa de estimular a estruturação de diversos núcleos de fomento cultural e formação profissional, atuando como uma dinâmica incubadora de empreendimentos. O Secretário Executivo do ISC é o jornalista e ex-prefeito de Ubatuba Celso Teixeira Leite.
O Núcleo de Documentação Luiz Ernesto Kawall (Doc-LEK), coordenado pelo professor Arnaldo Chieus, organiza os documentos selecionados nos diversos núcleos do Instituto Salerno-Chieus (ISC). Seu objetivo é arquivar este patrimônio (fotos, vídeos, áudios, textos, desenhos, mapas), digitalizá-los e disponibilizá-los a estudantes, pesquisadores e visitantes. O Doc-LEK divulga, também, as ações do Colégio Dominique.

LEK - Luiz Ernesto Machado Kawall (1927-2024), jornalista e crítico de artes, foi ativo colaborador do Instituto Salerno-Chieus (ISC) e do Colégio Dominique. É um dos fundadores do Museu da Imagem e do Som de São Paulo e do Museu Caiçara de Ubatuba.

15 março 2025

Memória da Gente

Um lugar chamado Colégio Dominique
Colégio Dominique e entorno
Imagem satelital em Agosto de 2022
Espaço geográfico” é um conceito da Ciência Geográfica para a porção espacial modificada pela ação humana. “Lugar” é a conceituação para a parte desse espaço com significados particulares e relações humanas. O atual Colégio Dominique é um lugar onde, outrora, existia um canavial da Fazenda Velha, produtora de cana de açúcar e derivados. Nas primeiras décadas do século XX, foi propriedade da família Cancer: Francisca Médice, Thomaz e Raphaela. O principal produto do estabelecimento era a aguardente Caninha Ubatubana, produzida inicialmente com a chancela de Francisca e, mais tarde, com a de Raphaela.
Rótulos da época em que a Fazenda Velha
pertencia à família Cancer
Sabe-se que Thomaz Cancer nasceu em Polla (Itália) em 11 de setembro de 1882 e faleceu, na capital São Paulo, no dia 25 de setembro de 1934. Uma rua da praia Grande, em Ubatuba, recebe seu nome. O nome de Raphaela, com a grafia vigente, é homenageado com a rua Rafaela Cancer, no Jardim Carolina.
Thomaz e Raphaela Cancer
No ano de 1928, Domingos Chieus veio para Ubatuba, contratado por Raphaela Cancer, para gerenciar a Fazenda Velha. Ele anteriormente trabalhava em Piracicaba, na Usina Costa Pinto, onde se especializou na fabricação de açúcar e álcool. Piracicaba sempre foi um polo da cultura de cana de açúcar e sempre teve, também, engenhos para cachaça. Domingos Chieus conhecia bem sobre essa cultura. E possuía conhecimento de máquinas agrícolas. Sua indicação para a ocupação em Ubatuba foi feita por Alexandre Malfatti, irmão da célebre artista plástica expressionista Anita Malfatti.
Domingos Chieus
Domingos Chieus era italiano de Veneza, nascido em 28 de maio de 1894. Filho de Giacomo Chieus e Maria Cerneas. No mesmo ano de nascimento, foi trazido como imigrante ao Brasil, com desembarque no porto de Santos. Domingos faleceu em 1943, aos 49 anos de idade. Deixou a mulher, Carolina Cera Chieus, e seis filhos: Roberto (nascido em 1918); Augusto (1920); Domingos Filho (1924); Gilberto (1927); Umberto (1930); e, Antônio (1941). Os mais velhos nasceram em Piracicaba; os dois últimos, Umberto (Nenê) e Antônio nasceram em Ubatuba.
Certidão de Registro de Domingos Chieus
Domingos e Carolina Chieus
Todos, a exemplo do pai, trabalhavam em diferentes funções na Fazenda Velha, época em que Raphaela Cancer era produtora da tradicional Caninha Ubatubana. Em 1952, Raphaela vendeu a Fazenda Velha, incluindo os maquinários, para quatro dos irmãos Chieus: Augusto, Domingos Filho, Gilberto e Umberto. Além do alambique, a fazenda teve olarias e produção de hortaliças.
Rótulo da Caninha Ubatubana,
quando era produzida pela Família Chieus
A partir da aquisição da propriedade, os Irmãos Chieus mantiveram a fabricação da Caninha Ubatubana, até 1978, quando desativaram a Fazenda Velha. Antes, porém, em 1972, em parte da gleba, foi implantado o loteamento Cidade Carolina, depois chamado de Jardim Carolina. A denominação é uma homenagem à mãe dos, então, proprietários da terra, Carolina Cera Chieus. Era filha de Antonio Cera e Luiza Martinati. Nasceu em Piracicaba (SP), no dia 26 de março de 1901.

Com a implantação do Jardim Carolina, alguns lotes, no ano de 1998, foram destinados ao casal Celso de Almeida e Ana Maria Salerno de Almeida. No local, ergueram benfeitorias para onde transferiram a sede do Colégio Dominique, mantido pela família.

O Colégio Dominique - lugar geográfico de saber, cultura e conhecimento - tem as coordenadas (23°26'18" S - 045°05'27" W). Fundado em 1978, pela Professora Ana Maria Salerno de Almeida, estabeleceu-se na rua Cunhambebe, até 1988; na rua Dona Maria Alves, até 1998; e, no Jardim Carolina, desde 1999.
Professora Ana Maria Salerno de Almeida,
a Pro Aninha, fundadora do Colégio Dominique
A criação do Instituto Salerno-Chieus, como fomentador das atividades culturais no Colégio Dominique, por meio de vários núcleos, é uma homenagem para Ana “Salerno” e Carolina “Chieus”.


Texto: Conselho Gestor do ISC / Núcleo Memória da Gente

Letras Ubatubenses

ALUMBRAMENTO
Joban Antunes
Poeta Caiçara
Se o que há em ti me comove
Porque te miro sem sentimento
E no momento
Meu lábio não se move?

Se o que há em ti me alumbra
Porque me escondo na penumbra
De um aflito coração
Carente de emoção?

Se o que há em ti me espanta
Então não adianta
Me revestir de medo
Revelar segredo
Que já não me encanta

Em ti está o começo
E o fim
Que se revela em mim
Todo meu apreço
Que vem do berço
E se completa assim

11 março 2025

Letras Ubatubenses

DELETADO
João Paulo Naves Fernandes
Tenho uma tecla
que me faz
perder tudo,
traído
pela tecnologia.

Sinto-me como
terra arrasada,
terem arrancado
parte do corpo.

Não recuperarei
este pedaço
de alguma
coisa,
presa
num texto,
contexto,
deletado
sem querer.

Vasculho onde passei,
rastreando com os olhos
para ver se encontro...

Qual nada!

Tudo perdido.

Sigo deixando
partes úteis
e inúteis
de mim
na indiferença
da vida,
enquanto suspiro
nos passos.

Se encontrarem
me avisem,
se for importante...

06 março 2025

Letras Ubatubenses

DISTRAÍ-ME
João Paulo Naves Fernandes
Distraí-me nas luas...
em qual me conheceste?
Imprevisto decifro
nuvens fugidias
antes que ventos cegos
expulsem os caminhos livres.

Andei invisível,
hoje grito,
não sei a hora

Distraí-me antes
que os lírios
despertassem
a ânsia
do perfeito.

Distraí-me
enquanto andava nu,
sem regras,
revoltado com tudo...

Conheces minha luas?

21 fevereiro 2025

Letras Ubatubenses

AMBIGUIDADE NECESSÁRIA
(meditando João da Cruz)
João Paulo Naves Fernandes
O amor aprende
com o sofrimento
a amar mais,
dor e o amor
são irmãos inseparáveis.

A paz
adquire significado
com a guerra,
quanto mais cruel,
maior busca pela paz.

O caminho
nem sempre
é o que
se deseja
seguir,
interrompe e desvia,
com ensinos novos,
imprevistos.

Amizades
são construídas
na exterioridade,
ao compartilhar,
se perdem.

A vida carrega
uma imensa
inconsciência
da morte,
que a acompanha,
permanentemente
interrogando
sobre a importância
disto ou daquilo.

A alegria
se desvela
diante do ódio,
mostra seu lado
sempre aberto
ao que é bom.

Acreditar
é gratuito,
e se expressa
melhor
entre descrentes.

A saúde
é descoberta
na enfermidade,
quando já é tarde;
a doença
é uma irmã
alienada.

Equilíbrio tênue
desconhecido
vai sendo
tecido
e medido
com o tempo.

Ah...condição humana,
nunca termina
de moldar o ser,
sem atingir
uma forma final.

20 fevereiro 2025

Letras Ubatubenses

EQUAÇÃO
João Paulo Naves Fernandes
Enquanto estou por aqui
decifro uma equação
que não fecha.

O sonho
não bate
com a realidade,
o amor
afoga-se nas instituições,
os caminhos
tendem a ser
os mesmos,
encontramo-nos
em diferentes solidões.

Enquanto estou aqui
estranho muito
a combinação
do belo com a dor.

Deixo um rastro
de esperança
e uma alegria
guardada
do fardo diário.

Depois dos passos,
me olho para ver
quanta força
ainda reúno,
e sigo em busca
de um resultado,
para esta equação
que não fecha.

Quem sabe
tudo esteja aberto
e eu lógico,
quem sabe
o uivo dos lobos
transcendam enfim
as montanhas
e alcancem
os roseirais
esquecidos
no jardim
da casa
de minha
infância.

15 fevereiro 2025

Letras Ubatubenses

ENTARDECER
João Paulo Naves Fernandes
Ao por do dia
guardarei um silêncio
de agradecimento;
responde mais
que mil palavras
dispersas na surdez
do mundo.

Direi de minha desatenção,
apesar do grande esforço
do tempo acumulado.

O pouco
será suficiente
para o tanto
a ser feito?

A vida escorre
em semiconsciência
entre saber
e desconhecer-me.

Não sou
quem procuro,
desconhecido de mim.

Sim, a alegria é gratuita,
mas a vida tem seu preço.

Vou guardar silêncio
em respeito ao eu
que nunca nasceu,
e ao outro,
póstumo vivo.

Que celebrem
o desencontro.

14 fevereiro 2025

Rumo aos 50!

Entrevista com Arthur e Professor Israel

Letras Ubatubenses

DOMINGAR
João Paulo Naves Fernandes
Domingo é dia
da institucionalização
da preguiça,
tão perseguida
pelo capital.

Dia de
não se fazer nada,
não desejar nada;
se for o caso
passear
por passear,
sem recitar.

Os poemas dormem
nos domingos,
porque os leitores,
que se cansam fácil;
neste dia então,
nada leem.

Ah...não ter
de escrever,
de declamar,
rimar.

Há um tédio
neste nada.

Do que será?

O que se produz
tem um limite,
e este limite
termina no nada,
e o nada,
o limite do nada,
é um tédio
da inutilidade de tudo,
descoberta
inconsciente
profunda.

Ah domingo
das velhas cavernas
ancestrais,
que evocam
longas contemplações
do por do Sol,
das estrelas noturnas.

Descanso na realidade
do vazio de mim.

02 fevereiro 2025

Letras Ubatubenses

DEFASADO
João Paulo Naves Fernandes
Poderia ter
dançado mais,
beijado mais...

Poderia ter amado
com mais frequência.

Falado mais,
ter me exposto mais.

Tudo isto fiz...
ainda assim
trago esta carência
que vem de longe...

Por isso
controlo os olhos,
disfarço,
como se estivesse realizado,
e em muitas ocasiões,
realmente estou.

Mas há um bom
desajuste neste meio.

Poderia ter sido
mais esperto,
desperto,
mais maduro,
quando imaturo.

Demorei em terminar a infância,
brinquei mais que namorei.

As meninas tornaram-se
mulheres antes,
me inibiram,
eu jogando futebol.

Agora, tudo é tarde,
ainda que me divirta.

Não tenho mais
espaço para transgressões.

Tive de redescobrir
novos modelos
de alegria
que suportassem
a agressão do tempo.

A verdade
é a dolorosa
observação
desta sequência
chamada vida.

25 janeiro 2025

Letras Ubatubenses

SE NÃO FOSSEM AS MANHÃS...
João Paulo Naves Fernandes
Ah...se não fossem as manhãs,
como adormeceriam meus sonhos?

Precisam sentir-se realizados.

Sonhos que sobrevivem acordados.

Como podem ter seus olhos abertos?

Ah...viver com os sonhos nas mãos...

Ah...manhãs poderosas
que nos redimem
das incertezas,
nos cobrem de esperanças.

Ah...que sou todo manhãs,
de Sol aberto,
nuvens pintadas
espalhadas por pincéis
no azul celeste.

Trago as manhãs
para as tardes,
e as tardes clamam
às noites
por sonhos.

Assim,
vivo de sonhos...

19 janeiro 2025

Letras Ubatubenses

MUDANÇA CLIMÁTICA
João Paulo Naves Fernandes
O tempo
está se findando...
muitos são os sinais
que surgem
de todos os lados.

Não é algo explícito,
mas todos percebem
que houve uma quebra
na lógica da natureza...

Não conseguem
alterar o rumo
para que este processo
seja interrompido,
até revertido.

Há alertas
conscientes,
esparsos,
insuficientes
para comover
profundamente
o sistema
para ações efetivas.

Não são
os pássaros,
os peixes,
os insetos,
nem os porcos,
os vagalumes,
as raposas,
menos ainda
os falcões,
as baratas,
gafanhotos.

Não é
a Lua
e o Sol...
estes continuam
suas rotinas
de trabalho e amor
indiferentes,
em sua lógica celeste.

Há um clamor
silencioso e cúmplice
que atravessa
incêndios,
inundações,
secas,
desertos...

Ah se despertassem
o zelo e o cuidado...
mas não,
seguem esperando
que leiam dos céus
as lições que trazem
sem palavras,
desnecessárias que são.

Um dia após outro
vai tudo se sobrepondo
e ruindo,
e eu junto,
estupefato.

27 novembro 2024

Letras Ubatubenses

ATÉ BREVE
(em memória aos que,
de fato, não foram)
João Paulo Naves Fernandes
Certas ausências
nunca morrem,
ficam nos interpelando
os dias que se vão,
como se continuassem.

Certas ausências
são mais que presenças,
dão opiniões,
sorriem de nossos erros,
compreendem.

Nos dias quentes
de verão, as vezes
nos despedem
de suas ausências,
e retornam
vagarosamente
até a primavera,
quando parecem
estar ao nosso lado.

Quando vemos,
o tempo
já se esgotou
a lembrança
é quase um reencontro.

Nunca digo adeus
a quem foi,
mas até breve.

Letras Ubatubenses

INDEFINIDO
João Paulo Naves Fernandes
Não entendo
meu coração,
desperta
dorme,
esquenta
esfria,
comove-se,
é indiferente.

O que gostaria
que fosse,
não é,
segue rumo próprio.

Estranhamente
guarda o tempo
em envelopes;
são abertos
tardiamente,
quando não resolve
na hora...

Outros,
sequer são abertos,
nem mesmo eu
arrisco abri-los.

Há ocasiões
em que finge-se
de morto;
é imenso o esforço
para revivê-lo,
nunca volta
como antes,
precisa começar
tudo de novo.

Há períodos
de extrema formalidade,
semelhante às badaladas
de um relógio de corda,
faz tudo conforme
o sistema estabelece,
parece não sofrer .

Hoje não sei,
quem sabe desperte,
quem sabe durma...
ou aqueça,
esfrie,
sei lá...

Letras Ubatubenses

MENSAGEIROS
João Paulo Naves Fernandes
Tenho um mensageiro do vento
na entrada de casa.
Traz notícias de longe,
altos mares,
montanhas escarpadas,
sintetizadas no bater
de notas metálicas agudas,
como as mudanças.
Anuncia leves brisas,
fortes tempestades.
Traz o que está
do lado de fora
da proteção
que me encontro,
faz pensar...
Tenho outro mensageiro,
escondido no fundo da casa.
Prefere discrição,
quer dizer algo,
aguarda raros silêncios.
Não o escuto direito,
exige total atenção.
Espera eu descer
alguns andares
de pensamentos,
então, bem baixinho,
sussurra pequenas sugestões.
Não se apresenta ostensivamente,
não gosta de interferir
em minhas opiniões
e decisões pessoais.
Tem mansidão,
voz suave quando fala.
Outro mensageiro ainda,
aproveita a dobra
da noite e do dia,
vem rápido,
diz logo o que quer,
cheio de tarefas.
Nunca completa uma frase,
é enigmático,
espera que eu decifre.
Muito concreto,
traz ordens
a serem cumpridas.
Mais um,
despe-se de sua suntuosidade,
fala a todos,
alto,
em plena tarde,
quando os sonhos
estão desfeitos.
Chama-me sempre pelo nome;
se o procuro,
a ninguém encontro.
De vez em quando
alguém quer se fazer
mensageiro.
A este,
quando identifico,
desprezo.
Tenho muitos
mensageiros comigo,
estão sempre aqui e ali.
Foram colocados
para que eu acerte
o caminho,
não erre tanto.

22 novembro 2024

Rumo aos 50!

Letras Ubatubenses

AQUI E AGORA
João Paulo Naves Fernandes
Sou o momento,
o instante,
afago e o beijo,
do sempre presente
desejo,
desapego e distância.

Sou do pé firme no chão
e olhos nos confins,
da palavra
que vai fundo ao coração,
e do silêncio da espera
de oportunidade.

Sou do grito por justiça,
e das lágrimas que correm,
viagem deslumbrante
em diferentes trajetos.

Nada espero e pouco almejo.

Tudo deposito no aqui e agora.

Sonho enquanto faço,
luto na realidade da vida,
presença viva
no meio de mortos.

Sou palavras de ordem
aos desalentados, 
e gritos de guerra
aos surdos.

Marco os passos
por onde ando
e abro frentes novas
diante das dificuldades.

Sou peregrino de mim mesmo,
retirando velhos escombros
reconstruindo novo ser.

20 novembro 2024

Letras Ubatubenses

Tarrafa Literária


Letras Ubatubenses

MÃE MENINA
João Paulo Naves Fernandes
outubro 21, 2013
O filho
quase uma boneca,
de tão nova.

A criança
e a criança da criança.

Entre os dois
uma fantasia órfã diverte
no percurso antecipado.

Algo tardará amanhã
do tempo que não veio
que se foi.

Algo se suportará sem razão.

(Poema "Mãe Menina" do livro "Dito pelo não dito")

Letras Ubatubenses

COAQUIRA E O EMISSÁRIO DO REI 

Paulo Andrade 

“Voltam os Tamoyos a Iperohy, enterram

os seus mortos, e Coaquira cura os feridos.

(Gonçalves de Magalhães in Confederação dos Tamoyos) 

Ubatuba, Capitania de São Vicente – 1550

Coaquira estava em sua oca, quando foi chamado por um índio da aldeia:

— Murumuxaua, tem visita!

— Quem é? — Inquiriu o chefe da Aldeia Iperoig.

— Homem branco português. Disse que tem urgência em falar com o murumuxaua.

— Mande entrar! — ordenou o superior iperoiguense.

Um homem de meia idade, barbudo, com roupas pesadas entrou no recinto da oca e saudou;

— Vida longa a Coaquira, bravo chefe de Iperoig!

— O que Portugal quer de Coaquira? — perguntou rispidamente.

O homem continuou:

— Sou emissário de Dom João III, enviado diretamente ao senhor. O rei sabe de suas habilidades de cura e precisa de sua ajuda.

— Na casa do rei tem os melhores curandeiros brancos.

— Sim, mas não conseguem a cura.

— Tem coisas que ninguém pode mudar, porque já estão escritas nas leis do céu.

— O que o senhor quer dizer?

— Diz a João III para aceitar seu destino. Coaquira só pode ajudar o rei a sofrer menos.

— O que o senhor recomenda?

— João sofre da doença da tristeza. É o peso do reino. Seu governo o escraviza. Tem muitas dívidas. É considerado o rei mais pobre da Europa. Seus pares também reis se referem a ele com chacota. Não pode pagar as dívidas dentro e fora de Portugal com os pesados juros. Ele queria estar livre da carga, mas não pode. Isso o faz sofrer da doença da tristeza.

Ele só pode se livrar do fim que lhe está escrito se deixar o trono. Ele passa a noite pensando nisso, não dorme. Vejo que o rei cochila no trono, enquanto despacha.

— Como o senhor sabe de tudo sem nunca ter visto o rei?

— Está tudo escrito e Coaquira lê nas linhas do livro  do céu. Seu rei não come direito, tem problemas de intestino, a comida não lhe faz bem.

— O que fazer murumuxaua?

— Coaquira não pode mudar o que o plano superior determinou, mas leva isso! É Cambará. Vai ajudar o rei a dormir e comer melhor. Mas não pode mudar o que vai acontecer daqui a sete anos. O rei deve aproveitar esse tempo para viver bem.

— Como é que se usa isso Murumuxaua?

— O rei vai fazer chá da folha e tomar de manhã antes de comer e à noite, antes de dormir. Um vaso pequeno basta por vez.

— Obrigado murumuxaua, o rei mandou-te esse agrado. — disse o fidalgo estendendo uma bolsa de moedas de ouro.

— A ajuda de Coaquira já foi paga pelo céu, Tupã já pagou. Agradeço a ajuda, mas prefiro que dê às crianças pobres dos orfanatos de Lisboa.

— Será feita a tua vontade murumuxaua.

O emissário saiu levando o pacote de ervas dado por Coaquira. A cada seis meses o emissário voltava para renovar a carga do remédio que ajudava o rei a se sentir melhor.

Coaquira seguiu ajudando o rei e a quem o procurava para curar seus males. Era murumuxaua, com boa vocação para Pajé.

16 novembro 2024

Letras Ubatubenses

A BONECA
Paulo Andrade
A menina sapeca
Que ri e que apronta,
Com uma boneca
Se acalma, se encanta.

A menina acanhada
Que quieta se fica,
Com uma boneca
Sorri e modifica.

A menina que ao espelho
Se vê e se especta,
Diz pra si: assemelho
Ser essa boneca.

A menina boneca,
boneca menina,
Sorri e não peca
Com a pequenina.

Pois nela se vê
E nela prospecta,
O desejo de ser
Eternamente boneca.

Letras Ubatubenses

A BOLA
Paulo Andrade
Dentro da sacola
que levo no braço,
No caminho da escola,
Ocupa um espaço 
Junto com a cola e
o caderno, a bola.

Andando, gasto sola,
Eu e meus colegas.
Uns andam como mola,
outros como cabra-cega.
Outros tocam viola,
Mas ninguém mesmo enxerga
Onde está a minha bola.

De um lado a turma embola
Andando no canto da estrada.
Carlinhos o tênis esfola
Andando na caminhada.
Correndo, Juninho extrapola,
Mas ninguém sabe nada
Sobre onde está minha bola.

É que não quero mostrar,
sei da vontade que assola,
a garotada a querer brincar.
Se eu mostrar a bola,
Ninguém sairá do lugar,
Ninguém chegará à escola.

Letras Ubatubenses

O MENINO MODERNO
Paulo Andrade
Ele passa as horas
Perdido no celular.
Uma rede social agora,
Depois pega a jogar.

No seu mundo navega
em mares virtuais.
Não ouve e nem enxerga,
quando lhe chamam seus pais.

O certo é que o menino
do futuro faz parte.
E vaga bem peregrino
no mundo onde faz arte.

Letras Ubatubenses

OLHAI OS LÍRIOS
Paulo Andrade
Olhai os lírios do campo!
Estão sujos na rua
Não se vê mais o seu branco
Sob o sol ou sob a lua

Olhai os lírios do campo!
Eles têm que trabalhar?...
Muitos não tem mais seu canto,
Um lugar para morar.

Olhai os lírios nas ruas!
Será que não tem pais?...
Me angustia as angústias suas
E o futuro que se faz.

Letras Ubatubenses

O PATINETE
Paulo Andrade
No natal
A menina pediu
de forma especial
Um presente que viu.

Estava bem à vista,
Em uma loja da rua.
Ela pediu ao lojista
O preço da prenda sua.

O nome da menina
Vou dizer: é Elizabete
E o presente, imagina?...
É um patinete!

Letras Ubatubenses

DORES AUSENTES
João Paulo Naves Fernandes
Ninguém conhece
minha dor.

Meus olhos
treinaram alegria,
consegui esconder
meus sofrimentos.

Todos
me veem alegre,
divertem-se comigo,
não sabem
o que guardo.

Cada um
com sua dores
mudas...

Vem um dia,
vai outro,
assim vão seguindo
dias sem fim,
enquanto celebro,
silenciosamente,
alegres ausências.

Letras Ubatubenses

ESSE NÃO É O MEU POVO
Joban Antunes
Poeta caiçara
Quem a louco admira
Um governante genocida
Que tira o valor da vida
Incita a fazer loucura
Impede a nossa cura
E mente de cara dura
Que vai fazer tudo novo
Esse não é o meu povo

Aprova ataques insanos
Aos pilares da democracia
Sem se importar com os danos
E a malta o obedece
Com toda anomalia
E a impunidade cresce
E mentem com muito denodo
Esse não é o meu povo

15 novembro 2024

Letras Ubatubenses

NUVENS BRANCAS
João Paulo Naves Fernandes
novembro 12, 2024
Nuvens brancas
passeiam lentas,
quase descansam
no manto azul,
parecem fotos.

Convidam
à paciência,
à paz.

Não se evaporam
rapidamente
diante do Sol,
disfarçam suas fragilidades.

São esperança de durabilidade.

Cientes de si,
desdenham
as avenidas congestionadas,
as mentiras
nas redes sociais.

Passam isentas,
seguem
não sei para onde,
não é necessário acompanhar.

De alguma forma
desaparecem
sem que se sinta falta.

Sou uma pequena
nuvenzinha a observar
tudo embaixo.

Hoje aqui,
amanhã,
sabe-se lá...

Letras Ubatubenses

VESTÍGIO
João Paulo Naves Fernandes
Não passa...
o tempo segue seu curso.
Para muitos passa,
porque o passado
apaga tudo.
Se sorrio
enquanto choro,
o quê importa
para as pessoas
que desconhecem,
não veem,
não sentem.
Quando entardece,
sou jogado
contra mim,
afloram
grandes distâncias

09 novembro 2024

Letras Ubatubenses

ÀS VEZES
João Paulo Naves Fernandes
Às vezes
não vem palavras,
mas lágrimas...

Olhos perpassam
vulneráveis fisionomias,
penetram...
descobrem a verdade
além da postura superficial,
vão dentro...

Às vezes
fico confuso
sobre a quem respondo,
a quem falo.

Melhor deixar
oculto o oculto,
submeter-me
às trivialidades.

Melhor remexer escombros
escavar vidas soterradas,
não estão ali por acaso,
esperam socorro.

Às vezes
palavras
são melhores
que lágrimas,
curam ...

03 novembro 2024

Letras Ubatubenses

BEIRA MAR 
João Paulo Naves Fernandes
outubro 31, 2024
Água de coco,
ondas findando
o mar,
povo distraindo-se.
A natureza perdoa
as contradições,
com diversões.
O Brasil renitente
do meio ambiente,
meias teorias,
maresias.
A prova do prazer
arrefece o sofrer.
Aprecio
a identidade do Sol,
da brisa,
as doutrinas do vôlei,
o partido dos copos vazios,
nunca enchem,
atingem a vertigem
das marés baixas,
distantes das dores.

02 novembro 2024

Letras Ubatubenses

DIA DOS MORTOS
Joban Antunes
Poeta caiçara
Hoje é o dia de todos
Os que já partiram
Os que sonham com a partida
Os que angustiamente aguardam ela
Os mortos de fome
Os mortos de medo
Os mortos de frio
Os mortos de sono
Os que morrem de paixão 

01 novembro 2024

Letras Ubatubenses

ESTÁ CHOVENDO...
Joban Antunes
Poeta Caiçara
Está chovendo...
Depois de dias de sol e calor está chovendo...
E os pingos tamborilam no bojo da canoa emborcada fora do rancho
Como se fosse uma canção antiga que a gente só lembra as notas
A musicalidade
Mas esqueceu da letra.
Está chovendo como se o céu chorasse as nossas mágoas
Como se o chão pedisse beijos
Como se nos lavasse o coração
A superfície do mar encrespada pela chuva nos convida a pescar
Os gonguitos e os pampos que pulam na arrebentação para sentir a água doce da chuva
Quando menino corria no meio do capim-melado para sentir no corpo o joçá grudado cosquento
E depois ter desculpa para banhar-se no mar
Está chovendo...
Mesmo assim o dia não está triste porque cada coisa
Cada parte desse cenário se com o sol fica brilhante
Com a chuva fica límpido e tem a suavidade de uma alegria esquecida

Letras Ubatubenses

João Paulo Naves Fernandes lançará o POMAR DE LETRAS, junto com a 2ª edição do DITO PELO NÃO DITO, que publicou em 1988. O lançamento será em 14 de dezembro de 2024, sábado, das 18h às 20h30m, no Espaço Scortecci, à rua Dep. Lacerda Franco, 96, em Pinheiros, São Paulo -SP.

Letras Ubatubenses

CONFIDÊNCIA
(Véspera de Todos os Santos)
João Paulo Naves Fernandes
Cometi muitos erros
em minha vida.

Quem sabe,
mais erros
que acertos.

Cheguei ao fundo
do poço,
ninguém sabe disto.

Por isso compreendo
os erros dos outros,
de todo o tipo.

Por ter errado muito,
aprendi, no sofrimento,
a não colocar-me
acima das pessoas.

Se olho de cima
(quem sou eu
para estar no alto),
quem sabe
mais Deus tenha
de se esforçar
em sua misericórdia,
para comigo.

O mundo sempre esteve
em minha frente
como uma conquista
a ser feita.

Somente o tempo
celebrou o casamento
do mundo comigo,
e pudemos fazer as pazes,
regar jardins
descobrir terras novas,
cuidar dos feridos
de toda ordem.

Ferido a cuidar
de feridos.

Ainda luto...
contra o mundo
e contra mim.

Sinto-me sempre puxado
para um lado
que não é bom,
enquanto esforço-me
para seguir outro,
ditado pelo coração.

Assim,
posso ser encontrado
às vezes sisudo,
outras vezes alegre,
depende do momento,
por onde caminho.

Tantos erros,
que tento
fazer o bem,
compensação
de situações
que não
se compensam,
acumulam.

Está somatória desperta
um juízo adormecido
que pende,
ora para o perdão,
ora acusação... 

Assim vou...

22 agosto 2024

A CATEDRAL VOLPIANA


por
Arnaldo Chieus

Diálogos paralelos 
Colagens do repertório crítico

Para Luiz Ernesto Kawall

Uma linha poligonal
               Um arco verdadeiro
Na precisão dos vértices 
Entre um cafezinho 
E o indefectível 
                Cigarro de palha.
Na ereção de um símbolo 
                Absolutamente panteísta 
A religiosidade genérica 
Mergulhando no infinito
 Na paz profunda de luz e sombra. 
Um misto de formas tipográficas
 fixando-se nas paredes etéreas
                  Pintura pura 
                  Religiosidade cósmica. 
No claro,
com luz natural
do dia – 
Só assim enxergo o mundo: 
Meu mundo de luz natural.
                Um legítimo toscano 
                Um dia fui nascido
                Sou, ainda, serei sempre. 
Lucca, Modena, Veneza 
Catalizador definitivo das imagens icônicas 
Símbolo de um passado que não foi 
Hoje, mestre solitário 
A caminhar nas calçadas do Cambuci 
ao largo de suas ruas tortuosas 
na desolação de seus muros 
                  Entre a forma primitiva 
                  E a trama geométrica 
A busca da realidade 
          Transcendente. 
E na louca paulistânia 
a inspiração matutina 
à luz da primeira manhã 
saindo, ousadamente 
no seu rimado contraponto. 
                   Ao abandono, gradual 
                   Da pintura, ao natural
Longe, tão longe
 Dos amigos, antigos do Santa Helena.
 A maturidade a partir do rosto
 Sem nome 
Trabalhando suas construções imaginárias 
exilado de suas feições. 
São os amigos, novos,
que se fazem próximos
entre o que tinham em comum
 e nas diferenças que os uniam. 
desde o trinta e seis” 
um pintor a superar o tempo 
– “Vocês andam à cata de gênios, 
E não conhecem o Volpi, no Cambuci? 
Vamos lá”! 
Criador sempre 
Além de tendência, corrente, e temáticas 
Uma técnica instintiva 
Pintando antes de conhecer Cezanne
 e na afinidade próxima 
dos pré-renascentistas. 

Bruno Giorgi e Volpi, 
uma velha amizade!
                    E foi na amizade de suas leituras 
                    que nos desponta o camponês simples
                  na espontânea paciência de sua generosidade. 
E daí à magia da trama 
Na tela múltipla 
Traço ágil em magistral equilíbrio 
Maestria nas cores quentes e frias 
Autêntico, sempre. 
           Metáforas, analogias 
            Figuras, composições, construções. 
            Geometria limpa 
            Amplos planos e majestosos espaços. 
A forma 
            A linha 
                        A cor 
a compor e recompor poliedros
escavando a intuição
aproximando-se da genialidade!
 
E, em absoluta neutralidade,
 compor – repor – recompor
 na magistralmente religiosa composição
 Ao aguçado olhar franco de Maria Eugênia!
             E daí surgem as ogivas 
             Relação visual com o natural. 

A partir daí ergue-se a Catedral 
em áurea seta, fora do sonho, 
na melodiosa linha de sua polifonia. 
Muito além do céu tristonho 
Em busca do edifício perfeito
Tão inteligível ao olho que examina a partitura
Quanto ao ouvido (treinado)
Que absorve a trama polifônica. 


Na composição desse poema foram utilizados fragmentos das seguintes obras: 
A Catedral – poema de Alphonsus de Gumaraens 
Dois Estudos sobre Volpi – Olívio Tavares de Araújo 
Bruno Giorgi e Volpi, uma velha amizade – Luiz Ernesto Kawall

Este poema foi escrito em  15 de dezembro de 2023 em homenagem a Luiz Ernesto Machado Kawall
*11.06.1927
+13.08.2024
À sua memória, o Instituto Salerno-Chieus mantém, em Ubatuba, SP, o Núcleo de Documentação Luiz Ernesto Kawall  (Doc-LEK).