Ricardo Grisolia Esteves*
Na Ponta da Trindade, Ubatuba, duas caiçaras com Virgínia e Waldemar Lefèvre |
Escrever sobre Virgínia Lefèvre é escrever sobre várias personalidades em uma única: a escritora, a filósofa e missionária, a figura carismática elevada que encantava e seduzia com suas idéias humanísticas todos aqueles que tiveram a honra de conhece-la pessoalmente. Profundamente espiritualizada e culta, jamais incutiu conceitos religiosos nas pessoas que a rodeavam, porém, sempre tinha para todos uma palavra de fé e esperança. Nunca a vimos falar de política porém, nos alertava sobre a quem e quais os caminhos que deveríamos evitar.
Já em 1942 Virginia Lefèvre e algumas amigas fundaram em São Paulo a Escola
para Crianças Abandonadas, que objetivava alfabetizar e capacitar para
serviços domésticos, moças adolescentes provenientes de famílias sem posses e
oferecer a elas educação familiar, cultura e boas maneiras, através do convívio
em casas paulistanas.
Seu marido, o engenheiro Waldemar Lefèvre, fora incumbido pelo Instituto
Geográfico e Geológico a determinar a linha divisória entre os Estados de São
Paulo e do Rio de Janeiro. Ao vir para Ubatuba, na companhia de seu marido,
Virgínia Lefèvre se estabeleceu no bairro do Itaguá e a partir daí, enquanto
durava o empreendimento de seu marido, percorreu toda a região até chegar as praias
mais distantes do norte, então somente acessíveis por mar e por trilhas na
mata.
Constatando a triste situação em que viviam as famílias caiçaras na
abandonada Ubatuba dos anos 40, Dª Virgínia usou sua influência na sociedade
paulistana da época e apelou ao seu círculo de amizades para fundar a SOCIEDADE
PRÓ-EDUCAÇÃO E SAÚDE – S.P.E.S., mantida às custas de mensalidades dos
associados e de rendas provenientes de eventos culturais.
Toda a vida de Virginia Lefèvre a partir de 1946 até seus últimos instantes
em 1987, foi integralmente dedicada a S.P.E.S., entidade que chegou inclusive a
ser declarada de interesse público pelos relevantes serviços sócio-culturais e
educativos que patrocinava ao povo caiçara de Ubatuba.
A S.P.E.S.tinha como missão “prestar assistência social, de forma
eficaz, promovendo a agregação da família”. Suas primeiras ações foram
realizar casamentos entre pessoas que já viviam juntas e com filhos e também o
de promover o registro dos filhos naturais pois muitos caiçaras não tinham registros
civis de casamento e seus filhos não eram registrados formalmente. Esta
situação impedia a comprovação de paternidade não lhes garantindo o acesso ao
direito sucessório, tornando-os vítimas de especuladores imobiliários que a
partir de documentação forjada, apropriavam-se facilmente de suas terras.
Outra pioneira iniciativa da S.P.E.S. que obteve efeitos transformadores
na sociedade caiçara foi a escolarização nas primeiras letras, com a fundação
de escolas. Em 1946 foi fundada a
primeira escola no bairro do Itaguá, onde apenas se chegava caminhando pela
praia. Em 1949 veio a da Caçandoca; em 1950 e 1951, respectivamente, foram
criadas escolas na Almada e no Camburi; em 1954 a escola no Sertão do
Ubatumirin. Na conceituação da S.P.E.S. a escola não se limitava a fornecer
alfabetização e o primeiro contato com os livros. O seu espaço era ao mesmo
tempo “a casa da lavoura; a farmácia; a enfermaria; o registro civil; a
câmara e a prefeitura”.
Os esforços em promover a saúde, o saneamento e a educação principalmente
dirigidos às famílias carentes e geograficamente isoladas, desprovidas de todo
tipo de amparo, foi uma constante em muitos anos. De campanhas para tratamento
dentário a mutirões para a erradicação de infecções epidêmicas, a S.P.E.S. atacou
todas as piores mazelas que afligiam a vida do isolado povo caiçara e para isso
buscou uma enorme soma de esforços, seja na iniciativa privada, seja na
imprensa, procurando comover a opinião pública em prol da obtenção de recursos.
E foi através da S.P.E.S. que o artesanato caiçara passou a ser uma
importante atividade, inclusive com a promoção de cursos para a melhoria dos
produtos e o fomento à produção. Esse material era levado a exposições em São
Paulo e a renda obtida revertia para os produtores, o que fez muitas famílias
se especializarem.
Passados quase vinte anos da extinção da S.P.E.S., só restou de sua
memória a lembrança de uns poucos amigos. Hoje a estrada já chegou ao sertão e
poucas são as famílias caiçaras que vivem da roça e do mar. Não nos cabe julgar
o que ficou de tudo aquilo – apenas prestar uma homenagem emocionada àquela que
dedicou abnegadamente a melhor parte de sua vida à causa dos esquecidos.
Parabéns Dona Virgínia!
*Ricardo Grisolia Esteves (arquiteto e ceramista, morando em Ubatuba conheceu a obra da SPES em curso de teares manuais na sede do Itaguá em 1983) foi vice-presidente da SPES de 1983 a 1985. É co-autor do Manual Prático do Mobiliário Escolar, editado pela ABIME em 2001.
11 comentários:
Ricardo, parabéns pelo texto. Adorei saber sobre os trabalhos de Virginia Lefèvre. Saudações Adriana de Almeida Prado
Ricardo,
É assim que a história deve ser escrita! Quantas passagens interessostracismo, não são divulgadas,antes e importantes ficam no é a História não oficial que enriquece o processo do conhecimento dos fatos históricos. Parabéns Ricardo, linda passagem!
Ricardo, parabéns! Um tributo muito justo! Pesquisei muito sobre essa nobre escritora e seu texto foi o único registro que encontrei. A Lagostinha Encantada foi o meu primeiro livro infantil, na década de 70, e o guardo até hoje com muito carinho. Gostaria de conhecer mais sobre a Virgínia, se possível: fotos, biografia, notícias sobre familiares,etc. Um abraço.
elaine.napoli1@gmail.com
Minha mãe lia pra mim a Lagostinha Encantada, é uma das mais antigas recordações da minha infância. Obrigada por nos apresentar a autora.
Hoje me veio a lembrança do livro "A Lagostinha encantada", lido com intensidade na biblioteca de minha escola!! Cabulava as aulas de ed. Fisica para ler. . e esse livro marcou a menina que fui. Minha doce infância. Grata por nós trazer informações sobre a autora, eu já nso lembrava.
Parabens pelos comentarios....participei do SPES ajudando na contabilidade e minha esposa na epoca Estela Maria trabalhava nos teares e fazia distribuição de enxovais para recem nascidos fornecido por D Virginia para o povo caiçara que ela muito bem conhecia.
Parabéns,Ricardo!!
Lindo texto sobre Dona Virgínia!!
Parabéns, Ricardo!!
Lindo texto sobre Dona Virgínia!!!
Vera Ubatuba.
Minha primeira leitura “de peso”, aos 8 anos, foi “O príncipe invencível”, biografia de Alexandre da Macedônia escrita pela prof.a. Virgínia. Presente de minha mãe, professora numa pequena escola no interior do RS. Deixou uma marca eterna. Hoje, meio século depois, estou a apresentar trabalhos ligando as mitologias antigas à psicanálise, inclusive desidealizando Alexandre, graças a este encanto despertado tão cedo. Muita gratidão a esta mulher extraordinária.
Olaaa…. Em 1966, ganhei “”as últimas façanhas da Fada Cacetinha””,hoje, tenho 67 anos, ainda o tenho, com mto carinho!! Amei saber um pouco sobre a vida dessa maravilhosa autora!!!
Graça/ Divinópolis/mg.
Que lindo texto! Ela é minha bisavô. Mãe da mãe de minha mãe. Me orgulho dessa linhagem feminina. Estou relendo Ana Selva, adoro seus livros todos. E a magnitude de sua alma me influenciou a trabalhar em Ubatuba com a edição pública. Sou professora.
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